Com venia do Publico de 27 Março
Acreditam que localizaram uma vala comum, nas margens verdes do rio Corubal, que guarda há 41 anos os ossos de militares portugueses ali naufragados durante a guerra colonial, e é atrás dessa pista que três jipes deixam a capital da Guiné-Bissau. Esperam todos que a viagem marque a descoberta daqueles que ficaram tantos anos para trás.
Quase quatro horas de caminho, de Bissau a Gabú, a antiga Nova Lamego, por uma estrada de alcatrão e um calor seco, forte. Pela berma, sucedem-se campos de arroz, plantações de caju, vacas, burros anões a puxar carroças, sacos de carvão à venda, tijolos de barro a secar ao sol, feixes de lenha, mesquitas, termiteiras com as suas pirâmides de terra gigantes, uma paisagem plana sem fim, seca e arborizada, povoações tradicionais com cubatas, as casas redondas feitas de paredes de terra e telhados de colmo, mulheres a caminhar pela estrada com o que calha à cabeça ou a bombear água dos poços, homens que conversam à sombra de árvores, crianças que brincam, gente que se move em bicicletas ou nos toca-toca, as carrinhas azuis e amarelas de transporte colectivo onde não cabe nem mais um alfinete, pequenas lareiras na rua ao entardecer. E sucedem-se cidades, como Bafatá, a terra natal de Amílcar Cabral, com dois monumentos ao líder histórico da Guiné e a casa de pedra onde nasceu, na parte mais portuguesa, abandonada e a convidar qualquer um a entrar pelas portas degradadas. Entremos por instantes. As paredes claras, despidas por completo e que noutras circunstâncias albergariam um museu, abrigam um intruso que se refugiou num colchão estendido no chão; e através daquelas portadas altas entrevê-se o largo onde um Amílcar Cabral terá brincado em criança.
Como será o Corubal agora, rio trágico para os portugueses?
Testemunho local
Uma tarde inteira nisto e Gabú, uma das principais cidades da Guiné, a cerca de 200 quilómetros de Bissau, surge ao entardecer aos viajantes, corpos moídos pelo calor. Tem aquele caos africano. Ruas esburacadas, lixo amontoado em qualquer canto ou mesmo no meio das estradas, barracas onde se vende todo o tipo de produtos, de relógios a sabão, laranjas ou amendoins. "Aqui vende-se bibida fresca e sumu", escreveram numa parede. Mulheres que percorrem as ruas, cada uma exibindo um vestido mais colorido do que a outra; e na antiga estação portuguesa dos correios, já sem todas as letras da sigla CTT, vislumbram-se os traços de um passado, 36 anos após a saída de Portugal da Guiné. Luz eléctrica, só nos sítios com gerador próprio e o resto é uma cidade às escuras, iluminada só pelo luar, tal como a capital.
Mussa Djaló, da etnia fula, vive aqui. Amanhã ele vai juntar-se aos viajantes portugueses, numa missão da Liga dos Combatentes, chefiada pelo major-general Fernando Aguda e acompanhada pela equipa de antropólogos forenses de Eugénia Cunha, da Universidade de Coimbra e colaboradora do Instituto Nacional de Medicina Legal. A partida para a última etapa da viagem, 40 quilómetros de Gabú a Cheche, a aldeia mais próxima do local do naufrágio, faz-se bem cedo, ainda o dia não clareou.
Terá chegado o momento ansiado por muitos, quer militares que estiveram em África, quer familiares dos que morreram? Estarão certas as pistas para a localização da vala comum e os restos mortais repousam realmente no local previamente identificado? Ajudará a missão, a primeira a procurar os mortos de Cheche, a sarar mágoas antigas ou acicatará os críticos destas missões?
De cabeça toda rapada, Mussa Djaló mantém o ar franzino aos 60 e tal anos. Na guerra colonial, integrou as Forças Armadas portuguesas: pertencia à companhia de Caçadores 5, em Nova Lamego, que tinha pelotões perto de Cheche, em Canjadude. Era aqui que estava destacado quando diz que viu o que viu nas margens do Corubal, fez em Fevereiro 41 anos.
Naquele dia caçava na floresta, entre Canjadude e a margem norte (ou direita) do rio. Cheche fica do lado de lá, logo atrás da vegetação. "Vim caçar para comer. Búfalo, antílope, gazela...", diz num português que, com esforço, se compreende. "Já tinha ouvido falar do acidente."
O desastre de Cheche
O acidente, dez dias a duas semanas antes dos eventos que Mussa Djaló iria testemunhar, é dos episódios mais marcantes do lado português da guerra colonial na Guiné.
O então brigadeiro António de Spínola, chegado à Guiné em 1968 como novo governador e comandante-chefe, decidiu avançar na estratégia de retirar as tropas do Leste do país, pouco povoado e, no seu entender, com pouco para defender. Para a retirada do quartel de Madina do Boé, uma tabanca, ou aldeia, com pouco mais de meia dúzia de cubatas, perto da fronteira com a Guiné-Conacri e constantemente sob ataque do PAIGC de Amílcar Cabral, foi desencadeada a operação "Mabecos Bravios" (cães selvagens).
Era a companhia de Caçadores 1790 que estava em retirada de Madina do Boé, e homens de outras companhias tinham vindo em apoio desta grande operação. Tropas, viaturas e todo o material de guerra percorreram os 22 quilómetros da picada entre Madina do Boé e Cheche, já na margem do rio.
Chegados ali, começaram a transpor os 200 metros de uma margem à outra em duas jangadas, na tarde de 5 de Fevereiro de 1969. Fizeram-no vezes sem conta, passando 28 viaturas pesadas, mais 100 toneladas de munições e equipamentos, três auto-metralhadoras Daimler e cerca de 500 homens. Ao início da manhã de 6 de Fevereiro, só restava na margem sul um grupo de homens: dois pelotões da companhia de apoio 2405, outros dois da que estava em retirada. Seriam 100 a 120 homens.
Entraram todos na mesma jangada, que passou a levar o dobro da sua capacidade de segurança. A meio do rio, a jangada adornou para um lado e atirou vários homens à água, balançou para o outro e cuspiu outros tantos. Carregados com a espingarda, a cartucheira à cintura, as botas, muitos afundaram-se como pregos no rio, pacífico na estação seca, de Novembro a Maio. Sem gritos, sem esbracejares. Naquele momento, a dimensão do acidente passou despercebida.
Só quando a jangada chegou à outra margem se percebeu a tragédia. Faltavam cerca de 50 homens (quase todos da metrópole). Este acontecimento ficou conhecido como o desastre de Cheche.
Quando a coluna em retirada tinha alcançado Cheche, antes da travessia do rio, os homens da companhia 1790 devem ter sentido alívio. Tinham aguentado 13 meses debaixo de fogo dos independentistas do PAIGC, que se escondia nas colinas em redor de Madina do Boé, e todos tinham escapado com vida. No fim dos 22 quilómetros de estrada de terra, que nos dias actuais, pedregosa, aos solavancos, consome hora e meia de viagem, Cheche significava o adeus a um pesadelo. Na época das chuvas, a estrada ficava intransitável, pelo que só de avião podia abastecer-se o quartel, agora pouco mais do que umas paredes em ruína.
Ainda hoje na aldeia de Cheche as casas são quase todas tradicionais e habitadas por famílias alargadas e não falta um campo de futebol, que se resume às balizas de paus num descampado. Entre os 300 habitantes, da etnia fula, encontram-se alguns que se viram no meio dos acontecimentos de 6 de Fevereiro de 1969. Alfa Umaro Djaló, muçulmano com três mulheres, nove filhos, seis netos, era soldado do Exército português em Madina do Boé. Na retirada, ia à frente a picar o terreno, não fosse haver minas, e na travessia do Corubal seguia na última jangada. Caiu à água. "Isso não vai apagar-se da memória. Morreram cinco africanos." Quando se senta com os filhos e os netos à noite, às vezes falam daquele momento: "Os netos reclamam por que não fui a Lisboa buscar os meus direitos. Não temos meios para ir." Os direitos ambicionados são uma pensão por ter combatido por Portugal.
Também Mamadu Bari, outro habitante de Cheche, conta como enfrentou o Corubal naquele dia. Tal como Alfa Umaro Djaló, foi atirado ao rio. "Faltou pouco para morrer. Despi a roupa e nadei." Ironia da vida: tornou-se depois jangadeiro de profissão na travessia do Corubal, mas há cerca de uma década, como atestam os calos, que vive do cultivo de arroz e milho.
Cerca de duas semanas depois do acidente, fuzileiros e mergulhadores da Marinha organizaram uma operação de recolha dos corpos, já em estado avançado de decomposição. Muitos tinham desaparecido. Na série de documentários A Guerra - Colonial, do Ultramar, de Libertação, de Joaquim Furtado, podem ver-se imagens aéreas de alguns corpos a boiar, recolhidas pelo então tenente (agora general) José Nico, piloto da Força Aérea. Joaquim Furtado relata que os corpos recuperados foram sepultados nas margens do rio, com as honras militares próprias. Antes, o jornalista mostrou imagens dos sobreviventes na jangada, também recolhidas por José Nico, e alguns dos companheiros nas margens a tentar ajudá-los.
Aquela jangada, um estrado de madeira assente em canoas e bidões de gasóleo vazios, era puxada por um pequeno barco com motor fora de borda. E agora, como se fará a travessia?
No dia em que Mussa Djaló caçava, a sede conduziu-o até ao Corubal e foi então que se deparou com a operação de recolha dos corpos. "Eu vi e não disse nada." O que diz ter visto foi um buraco perto da margem norte e um helicóptero a transportar os corpos até um descampado.
Há uns meses, Mussa Djaló e a Liga dos Combatentes cruzaram-se em Gabú. Mal souberam que a Liga andava no terreno, a palavra foi passada entre os antigos soldados guineenses das Forças Armadas portuguesas, que têm uma associação na Guiné. Eles aparecem e prestam informações, que podem ajudar a localizar os restos mortais de militares portugueses espalhados pela Guiné, para identificação e concentração no cemitério de Bissau (nas quatro intervenções anteriores, iniciadas em 2008, exumaram-se 50 combatentes da metrópole, nove dos quais foram trasladados para Portugal por vontade das famílias). Em Novembro do ano passado, Mussa Djaló levou o general Fernando Aguda, vice-presidente da Liga, e os tenentes-coronéis Álvaro Diogo e Carlos Correia, da mesma instituição, até ao local onde afirma ter visto a vala em Fevereiro de 1969.
Com eles ia o geofísico Hélder Tareco, da Universidade de Aveiro, que entrou em acção com a sua máquina de prospecção do subsolo. Precisamente no sítio indicado por Mussa Djaló, o geo-radar de Hélder Tareco sugeria uma diferença de densidade no solo, compatível com terra remexida e a presença de ossos. Portanto, os testemunhos locais e a prospecção geofísica coincidiam: ali deveriam estar sepultados alguns dos náufragos do desastre de Cheche. As coordenadas geográficas referidas num relatório da Marinha, consultado pela Liga, apontavam igualmente para aquela zona.
Quatro décadas depois, continua a existir uma jangada em frente a Cheche. É agora moderna, tem motor próprio e serve para a travessia de carros apenas. O resto, pessoas, bicicletas, motas, vai de piroga, e há várias. Imperturbável, o Corubal é tranquilo nesta época do ano, a mesma do acidente, e a água, um tanto esverdeada, é ladeada por margens íngremes cobertas por árvores e vegetação densa. Ao sítio da travessia, com Cheche do lado de lá, chega-se por uma estrada larga, depois de uma sucessão de tabancas na berma de um caminho de terra, ponto de encontro de quem está à pesca, de quem lava a roupa e a estende no chão, de quem toma banho ou de quem simplesmente passa por ali.
Agulha na floresta
O momento da verdade aproxima-se. Ainda mais cinco minutos num barco a motor ao correr da margem direita, a subida a pique por uma escada de bambu construída para a missão, uma pequena caminhada através da vegetação, e eis que se chega ao local, finalmente.
Encontra-se mesmo em cima da margem do rio, que corre seis metros abaixo, e ficou delimitado por fios no chão na missão de reconhecimento da Liga em Novembro. As árvores deixam-no à sombra. O silêncio seria absoluto, se as aves não chilreassem ao longe e os recém-chegados não viessem para uma actividade ruidosa. Descalço, Mussa Djaló, de faca à cintura, camisola branca de alças, começa a cavar, com um grupo de guineenses seus conhecidos contratados para este trabalho.
"Mais um Inverno e não havia hipóteses", diz Fernando Aguda, que temia que as chuvadas levassem mais um bocado da margem, derrubando a vala lá para baixo. "Eles têm a certeza que é aqui!", lembra Carlos Correia. "Ainda bem, para me animarem", comenta Eugénia Cunha.
Os guineenses cavam à vez, ora atirando-se à terra dura com uma enxada, ora atirando-a lá para baixo às pazadas. A cova que vai surgindo a pulso é o centro das atenções. Há quem se sente à sua roda no chão e vá trocando impressões, à espera de que, removidas as camadas superficiais, os antropólogos entrem em acção.
"Os marinheiros é que abriram o buraco. Os corpos foram todos [embrulhados] numa grande lona", lembra Mussa Djaló, que amontoa folhas secas no chão, simbolizando os corpos. "Esta terra é do buraco", e aponta para um monte antigo ao lado. "Pode não ser fácil distinguir as raízes dos ossos", vai dizendo Eugénia Cunha. "Tem crocodilo aqui?", quer ela saber a certa altura. "Tem."
Entre quem cava, relembram-se histórias paralelas ao desastre. Galé Djaló, de Cheche, também antigo soldado português em Canjadude, conta o que encontrou mais tarde: "Quando brincávamos na água, vimos as armas no fundo do rio. Entreguei-as à polícia."
Como numa cirurgia
Volta e meia, param de cavar e os antropólogos entram na cova, de colherim e pincel na mão. Raspadela aqui, outra ali, discutem se a coloração da terra é compatível com uma vala antiga, se há alterações de densidade ou como aqueles carvões que acabaram de encontrar são sinal de solo remexido...
"Isto é como as cirurgias: é preciso abrir para ver o que está lá", diz Sónia Codinha, também antropóloga forense. "Não sei como podem ter a certeza ao fim de tantos anos", questiona-se Gonçalo Carnim, outro antropólogo, que também pega na enxada.
Mas Mussa Djaló insiste. É ali, afinal ele conhece a geografia da floresta, onde hoje vai fazer os seus cultivos, tal como um citadino conhece os recantos da cidade onde vive há anos.
Algumas horas nisto, já o buraco vai nos 90 centímetros de profundidade, e nada. "O Hélder dizia que se via bem lá na maquineta", recorda outra antropóloga, Teresa Ferreira. "O geo-radar pode enganar-se assim tanto? Não parecia, mas...", interroga-se Eugénia Cunha.
"Cheira mal", informa a certa altura, de dentro do buraco, Sónia Codinha. "Cheirar mal é bom sinal?", indaga Fernando Aguda. "Sim", responde-lhe Eugénia Cunha.
"Senhor Mussa, isto é muito duro! Não será antes aqui?" Sónia Codinha aponta então para o tal monte de terra antigo. Nesse monte, começam a abrir outro buraco. Todos estão cientes de que a memória é fluida depois de 41 anos, que, nesses tempos, a precisão das coordenadas geográficas não era bem como agora, na era do GPS, e que basta cavar uns metros ao lado para não encontrar nada.
"A antropologia tem destas surpresas", comenta Gonçalo Carnim. "Um resultado negativo é um resultado", diz Eugénia Cunha.
A esperança de dar com a vala é adiada para o dia seguinte, o último das escavações. Logo pela manhã, Eugénia Cunha quer inspeccionar a margem do rio lá de baixo, no barco. Pode ter-se dado o caso de a vala ter desmoronado e restarem vestígios disso na encosta. Gonçalo Carnim procura-os empoleirado na margem quase a pique. "O solo é todo profundo. Se havia aqui qualquer coisa, já foi", grita lá de cima.
Nada na encosta, portanto. E continua a cavar-se. Na parte mais funda, o primeiro buraco tem 1,8 metros. Abrem-se à volta vários buracos mais pequenos. Tudo em vão.
O que detectou afinal o geo-radar? Apanhou uma grande densidade de raízes, algumas com o calibre de ossos. "Este local tinha sempre de ser prospectado. Há um resultado negativo, mas agora temos a certeza que neste local não há nada", remata Eugénia Cunha.
As dúvidas mantêm-se. A vala está por ali? Ou já foi rio abaixo, por anos de erosão das margens? Ao lado do chão esburacado, Fernando Aguda dá a operação por terminada e, em jeito de tributo, diz: "Esta parte da missão cumpriu-se com o sucesso do rio. Desta vez, não nos foi possível combatê-lo. Ao Corubal, uma reverência."