"O embaixador Dário Moreira de Castro Alves (1927-2010) esteve nove anos a braços
com uma tarefa de proporções ciclópicas: traduzir para o português o romance em
versos Eugênio Onegin, obra-prima do
poeta russo Alexander Pushkin (1799-1837), precursor de Dostoievski (1821-1881)
e Tolstoi (1828-1910). O livro acaba de ser publicado (Rio de Janeiro, Editora
Record, 2010, 288 págs., R$ 47,90), mas o embaixador não poderá fazer o
lançamento que imaginava organizar nos jardins da Embaixada do Brasil ou no
Palácio Galveias em Lisboa. O embaixador faleceu dia 6 de junho em
Fortaleza.
Ainda bem que a Academia de
Literatura Russa agiu com rapidez e já lhe havia reconhecido o trabalho com uma
condecoração. Também o embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da
Costa, com a parceria do Instituto Rio Branco, fez-lhe, em janeiro de 2009, uma
homenagem na sede da Embaixada de Portugal em
Brasília.
Natural de Fortaleza, o embaixador
Dário cumpriu duas brilhantes trajetórias: na diplomacia e na literatura. Em
1984, publicou Era Lisboa e Chovia
(Rio de Janeiro, Nórdica) sucedido por Era Tormes e Amanhecia (Rio de Janeiro,
Nórdica, 1992) e Era Porto e Entardecia (Rio de Janeiro,
Nórdica, 1995), trilogia que constitui um mergulho profundo no universo de Eça
de Queiroz (1845-1900). É também autor
de Dinah, Caríssima Dinah (São Paulo,
Horizonte Editora, 1989), livro em que homenageou a esposa, Dinah da Silveira de
Queiroz (1911-1982), romancista, cronista e contista que integrou a Academia
Brasileira de Letras, com quem foi casado de 1962 a 1982. Seu último livro foi
Luso-Brasilidades nos 500 Anos
(Universidade Federal do Ceará, 1999), que reuniu artigos e
palestras.
II
Filho de uma família de grandes
comerciantes e industriais, ele preferiu seguir sua vocação e continuar os
estudos no Rio de Janeiro, onde se formou em Direito, pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC). Seguiu, então, para o Instituto Rio Branco,
preparando-se para a carreira diplomática. Tornou-se poliglota. Aos 22 anos,
após um estágio na Organização das Nações Unidas (ONU), foi nomeado
terceiro-secretário. Em 1954, passou a cônsul de segunda classe, trabalhando em
Buenos Aires até 1958. Em Nova York, foi segundo secretário da ONU, entre 1958 e
1960.
De 1962 a 1964 foi
primeiro-secretário na Embaixada do Brasil em Moscou, onde teve despertada a sua
paixão pela literatura russa, e de 1965 a 1967, cônsul em Roma e, em 1971,
primeiro secretário. Após 27 anos de trabalho, chegou, em 1979, ao cargo de
embaixador, representando o Brasil em Lisboa até 1983. Já havia sido chefe de
gabinete do ministro das Relações Exteriores e secretário-geral e
ministro-interino das Relações Exteriores. De 1983 a 1989, foi embaixador na
Organização das Nações Unidas (ONU), em Washington. Foi ainda cônsul-geral do
Brasil no Porto até 1990, quando se aposentou com categoria de
embaixador.
Em vez de retornar ao Brasil,
preferiu fixar residência em Lisboa, num apartamento no Campo Grande, a 100
metros da Biblioteca Nacional, até onde se deslocava quando necessitava apurar
alguma informação. Por isso, sempre foi tratado por todos os diplomatas que o
sucederam no cargo em Lisboa como uma espécie de embaixador-honorário do Brasil.
Era freqüentemente convidado a dar palestras em instituições portuguesas, como a
Academia das Ciências de Lisboa. Foi eleito membro da Academia Portuguesa da
História. E era presidente do Conselho de Curadores da Fundação
Luso-Brasileira.
III
Aos pesquisadores e estudantes brasileiros em Portugal sempre foi um
porto seguro, ajudando-os com indicações e informações preciosas. Em 1998, o
ex-embaixador do Brasil em Portugal, José Aparecido de Oliveira (1929-2007), por
moto próprio, ofereceu-lhe o livro Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos,
Universidade Santa Cecília, 1997), deste articulista. Como à época escrevia o
prefácio para o livro Fernando Pessoa: o
Antidemocrata Pagão, de Ruy Miguel (Lisboa, Nova Arrancada, 1999), Dário
citou Fernando Pessoa: a Voz de Deus para
lembrar que o poeta não havia sido fascista, mas defensor de uma monarquia ideal
baseada na opinião pública.
Foi o que bastou para
interessar a editora portuguesa por algum trabalho deste articulista. Assim, em
1999, saía pela Nova Arrancada, de Lisboa, o romance Barcelona Brasileira, com prefácio de
Dário Moreira de Castro Alves. Escrito em 1983, o livro, que trata da agitação
anarquista no Porto de Santos entre 1917 e 1922, só sairia no Brasil em 2002
pela Publisher Brasil, de São Paulo, com a apresentação de Dário Moreira de
Castro Alves e prefácio do professor Massaud Moisés, da Universidade de São
Paulo.
Por indicação ainda do embaixador
Dário Moreira de Castro Alves, este articulista escreveu prefácios para
dois livros de contos de Machado de Assis organizados pelo professor Vadim Kopyl
e publicados, em 2006 e 2007, pelo Centro Lusófono Camões da Universidade
Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, Rússia, em edição bilíngüe
russo-portuguesa, com o apoio do Ministério das Relações Exteriores do
Brasil.
IV
Embora extremamente
afável, Dário Moreira de Castro, à primeira vista, parecia bastante formal –
pedia a quem o visitasse em sua residência que assinasse o “livro de honra” e às
mulheres sempre fazia um salamaleque em que apenas fingia que beijava a mão da
dama –, mas, depois de alguns minutos de conversa, deixava de lado as exigências
diplomáticas para uma conversa bastante descontraída em que gostava de lembrar
seus primeiros tempos de Fortaleza. Mas o que o fazia falar por horas com
mansuetude na voz era mesmo a Lisboa de Eça de Queiroz.
Andar ao seu lado num
automóvel pelas ruas lisboetas era redescobrir a urbe queirosiana e resgatar os
passos de suas personagens: “Ali naquele
prédio da esquina da Rua Áurea com o Rossio ficava o consultório de Carlos
Eduardo” (personagem de Os
Maias), apontava. Ou: “Esta é a
correnteza de casas velhas a que se refere Eça em O Primo Basílio”, dizia,
mostrando o Largo de Santa Bárbara, nos Arroios.
Às vezes, dizia para
seu motorista particular desviar o caminho só para passar por uma ladeira
íngreme de um bairro bem degradado da velha Lisboa: “Aqui o Xavier foi viver com a espanhola
Carmen, num casebre da Rua da Fé”, dizia, referindo-se a personagens de A Relíquia. Todos esses logradouros
estão retratados em Era Lisboa e
Chovia em fotos de seu amigo A.Campos Matos, arquiteto e notável
queirosiano.
O que o fazia perder um
pouco a fleuma britânico-cearense era a velha discussão sobre a morada de onde
Eça de Queiroz tirara a inspiração para criar O Ramalhete, casa em que a família
Maia (Afonso e o neto Carlos Eduardo) passou a habitar no outono de 1875. Para o
embaixador, Eça teria se inspirado na casa do Conde de Sabugosa, um dos vencidos da vida, que fica em Santo
Amaro, perto da Junqueira, na Rua Primeiro de Maio, 120-124, a meio caminho
entre Alcântara e Belém, e não no bairro das Janelas Verdes, como muitos
estudiosos diziam. Seguia o que afirma A.Campos Matos em Imagens do Portugal Queirosiano
(Lisboa,1976).
Os passeios sempre terminavam com um
almoço ou jantar num dos restaurantes preferidos de Eça de Queiroz, nas
proximidades do Chiado. O cardápio tinha de acompanhar rigorosamente a
gastronomia queirosiana regada sempre por bons vinhos e outras bebidas, seguindo
o que escrevera em Era Porto e
Entardecia, que traz uma
lista de todas as bebidas mencionadas por Eça, do absinto à zurrapa, e em Era Tormes e Amanhecia, que constitui um
completo dicionário gastronômico cultural, com o nascimento literário de Eça de
Queiroz na região do rio Douro. Sem contar o privilégio de se apreciar a bebida
ouvindo a história de sua origem, pois Dário Moreira de Castro Alves também é
autor de O Vinho do Porto na Obra de Eça
de Queiroz (Sintra, Colares Editora, 2001).
V
Em 2003, já vivendo o
inverno da vida, viúvo pela segunda vez, depois da morte de Rina Bonadies de
Castro Alves, o embaixador decidiu voltar para Fortaleza, para um apartamento na
Praia do Meireles, defronte para as águas verdes do Atlântico. De lá, porém,
continuou a sua missão de construir pontes de entendimento entre o Brasil e o
mundo, especialmente com Portugal e a Rússia. Era presença constante como
articulista nas seções culturais dos diários e dos jornais literários, sempre em
defesa da lusofonia, o que o levou a se colocar em 1993 ao lado do embaixador
José Aparecido de Oliveira na luta pela criação da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (CPLP). Brasil, Portugal e Rússia talvez não saibam, mas
perderam um grande pontífice."
Adelto Gonçalves___________________________________
(*)
Adelto Gonçalves é doutor em
Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto