O armário portuga-tuga-pula. Crónica dos anos da peste
"Entre as heranças do passado que mais se atravessam na alma portuguesa está o ultramar. Justifica-se. A colonização estendeu-se por mais de meio milénio (1415-1975) e, bem ou mal, projetou a identidade portuguesa no mundo de onde jamais sairá. Por seu lado, a fase final do ciclo do império invadiu e repousa nas casas portuguesas. Seja por causa do cumprimento do serviço militar nos anos da guerra, da migração para as terras do antigo império, das notícias, dos negócios, do destino de familiares, amigos ou vizinhos, da revolução, dos retornados, dos imigrantes chegados dos trópicos, das salas de aula para todos que deixam gravadas nas mentes sinais da era ultramarina, da nova emigração. Por tudo e por nada.
Reconvertido em fantasma uma vez desfeito, o império conseguiu tornar refém um país inteiro, enclausurando-o num armário peculiar, em vidro cristalino. Do seu interior, a vista desarmada alcança as marcas da antiga dominação além-mar ainda bem visíveis na Ásia, na América do Sul e sobretudo em África, a derradeira estação. Todavia, afetada, a vista dos reféns olha mas não vê a complexidade do seu próprio legado colonial, atributo que lhe confere enorme valor histórico, cultural, social, humano, civilizacional.
A sabedoria popular atesta que quem não tem cão caça com gato. E quem não tem petróleo ao menos tem-se a si. Mas para os portugueses se reencontrarem consigo mesmos estão obrigados a colocar o dedo na dolorosa ferida narcísica provocada pela morte abrupta do seu império. No entanto, vão preferindo sobreviver numa fuga permanente à dor da cura. Nessa fuga foram contaminados por uma incapacitante doença identitária que pouco tem a ver com a perda em si, antes com uma patológica veneração do luto.
O império está morto e nada apagará a justiça, a dignidade e o respeito que as independências dos povos merecem. O adiável porém inevitável choque com a realidade não deixará aos portugueses outra possibilidade que não seja a de reinventarem a relação com o seu passado (na foto: caixas com bens de retornados, Lisboa, 1975)
Os impérios morrem. A história não deixa dúvidas. Mas há impérios e impérios. Os legados de alguns vivem para sempre, exigindo às consciências o resgate do seu valor das poeiras da história. O facto é que o tempo vai correndo e não se vislumbra cataclismo, crise ou editorial de um qualquer jornal de Angola que provoque, nos portugueses, a irresistível tentação de se libertarem do armário contaminado. Remoem numa injustificada menoridade que os torna ainda mais raquíticos na relação com os outros povos.
O império está morto e nada apagará a justiça, a dignidade e o respeito que as independências dos povos merecem. O adiável porém inevitável choque com a realidade não deixará aos portugueses outra possibilidade que não seja a de reinventarem a relação com o seu passado e perceberem que, no futuro, esse passado pode assumir um valor para o sentido das suas existências bem superior ao do império em vida.
Contudo, para que os descendentes de Bartolomeu Dias voltem a dobrar o Cabo das Tormentas, as atuais elites intelectuais, com destaque para as universitárias, são o rosto do novo Adamastor. Foram elas que elaboraram e impuseram uma linha de pensamento único que ganhou o lustro de doutrina oficial. Para a tribo intelectual dominante, o luto do império é para ser imposto aos outros para todo o sempre. Recorrem a um permanente carpido profissional, por vezes estridente, que vem assumindo variados formatos de aparência respeitável: científicos, literários, artísticos. Em tratados, teses, artigos, prosa, verso, teatro, música, cinema, dança.
Para as demais tribos em que se mescla a gente comum virou prova de vida ousar trajar novas cores, manifestar vontade de arejar, de respirar ar puro, de descrer dos dogmas. Esse pisar de risco fragmentará em estilhaços o armário. Será tão certo quão certo continua a ser o poder paralisante dos Mostrengos em sociedades mágico-místicas com relações desavindas com a racionalidade, quer dizer, com a realidade.
Dure o que durar, num futuro qualquer (quase) todos acharão ridícula a paranoia fúnebre vigente que, no entanto, já celebrou quatro décadas. Ela tem estado no âmago dos males coletivos que se sucedem em Portugal desde a perda do império. A crise financeira e económica dos dias que correm é apenas mais uma que veio sobrepor-se à depressão identitária coletiva há muito latente e bem mais profunda. Sair do ciclo endémico de crises implica enfrentar os recalcamentos da relação dos portugueses com a sua alma, isto é, com a sua história.
A focagem seletiva apenas no desfavorável do processo colonial, quando o negativo e o positivo estão profundamente imbricados um no outro, é tão prejudicial à sanidade da identidade portuguesa quanto à das identidades africanas pós-coloniais (Na foto: memorial aos combatentes da I Grande Guerra em Moçambique, Maputo)
Sendo o diagnóstico complexo, sujeito duas hipóteses a exame clínico.
A primeira para atestar que a colonização portuguesa, enquanto fenómeno histórico (do passado) e social (porque condiciona o presente), oscila entre um extremo negativo (escravatura, trabalho forçado, culturas obrigatórias, violência arbitrária ou racismo) e um extremo positivo. Não é por acaso que em Moçambique, com essa fórmula ou em fórmulas aproximadas, um pouco por todo o país e há mais de uma década que ouço: «Eles, os portugueses/brancos/colonos civilizaram-nos». Nos diálogos de senso comum (ou «de rua») depois as pessoas conferem conteúdos concretos a essa sua avaliação, por muito que tenhamos de relativizar o termo «civilizaram-nos».
Não se trata de avaliações circunscritas, episódicas, acidentais. Trata-se de um fenómeno social que pode e deve ser equiparável ao outro que atesta a existência de um legado negativo da presença colonial portuguesa em África. Ambos são inegáveis.
Fica a descoberto o vírus indutor da patologia. No ato de truncar ou censurar, por sistema e vício, um dos extremos referidos nas interpretações sobre o passado colonial português (e europeu) em África. Esse comportamento do vírus adultera a memória, adultera a complexidade da memória, nega a memória enquanto tal, gerando o que os psicanalistas designam por desvio funcional depressivo das memórias.
A focagem seletiva apenas no desfavorável do processo colonial, quando o negativo e o positivo estão profundamente imbricados um no outro, é tão prejudicial à sanidade da identidade portuguesa quanto à das identidades africanas pós-coloniais, cujo senso comum indicia jamais ter ratificado diagnósticos simplórios pretensamente doutos.
Sendo intrinsecamente subjetiva qualquer ideia de verdade na complexidade de um organismo vivo do tamanho do mundo, a imposição aos povos de visões seletivas, parciais, truncadas do sentido do seu próprio passado, do sentido da vida vivida por quem a viveu, atenta contra a saúde de qualquer ideia de cidadania. Se o «mal» nunca deve ser apagado da memória dos povos, ao «bem» assiste igual legitimidade. As meias-histórias, como as meias-verdades, arriscam-se a ser fontes alimentadoras de epidemias, algumas delas comprovada e massivamente mortíferas para os povos. Algo de profundamente patológico existe no sentido atribuído à colonização portuguesa e europeia em África, aparentado ao mais sinistro da tradição soviética.
A segunda hipótese baseia-se num teste de sanidade elementar na relação com o passado. Ele pressupõe que desde que a história se fez história existiram colonizações de uns povos por outros.
Para isso, proponho que cada um construa uma tabela de dupla entrada na qual, de um lado, coloque como título «Contributos da herança colonial de romanos e árabes para a transformação civilizacional dos povos europeus». Depois preencha-se esse lado da tabela com tópicos exemplificativos. Indico alguns: introdução da cultura escrita, da ideia de estado territorial centralizado fundado na lei, de um modelo de civilização material até aí desconhecido (cidades, estradas e demais edificações), da monetarização e complexificação das economias, do cálculo, de novos hábitos de vida e do cristianismo, de progressos técnicos, a imposição da pax romana ou a tolerância religiosa islâmica.
Conjunto de contributos valorizado nas interpretações que os portugueses e outros povos europeus da atualidade fazem do seu longo passado enquanto colonizados, por isso transmitidos à generalidade dos cidadãos desde os níveis de ensino mais elementares para estimular a sanidade existencial da identidade coletiva a que pertencem.
A colonização deixou de ser representada como um fenómeno histórico e social com carga positiva na transformação dos povos para passar a tenebrosa pandemia confundível com um crime premeditado contra a humanidade. (Na foto: parada de tropas rebeldes durante a guerra de Angola, 1966)
Do outro lado da tabela sugiro a colocação do título «Contributos dos portugueses/europeus para a transformação civilizacional dos povos africanos nos séculos XIX e XX». Todavia, neste último caso os termos «contributos» e «civilizacional» previsivelmente assumirão carga pestilenta, mesmo sabendo por antecipação que este lado da tabela irá ser preenchido com tópicos na substância semelhantes aos do outro lado da tabela, bem como que a maior revolução cultural de sempre em África, ainda em curso, resulta da introdução do vírus da cultura escrita, símbolo maior da herança colonial portuguesa e europeia.
É claro que num caso se trata de um fenómeno há séculos resolvido no plano afetivo e emocional e no outro o fenómeno permanece vivo. Mas é por estar vivo que nos deveria forçar a uma opção consciente entre viver ou vegetar num armário contaminado, o que também se aplica às elites africanas.
À medida que os portugueses (e seus ascendentes, bem como outros europeus) passam de colonizados a colonizadores, e quanto mais nos aproximamos do século XX, mais se invertem os critérios de avaliações pretensamente científicas ou racionais. A colonização deixa de ser representada como um fenómeno histórico e social com carga positiva na transformação dos povos para passar a tenebrosa pandemia confundível com um crime premeditado contra a humanidade. A condizer, a designação transita de colonização para «colonialismo», exemplo de cátedra de adulteração científica (ou manipulação ideológica) pura e dura.
Sente-se confuso depois do exercício? Por mim, espero que um dia os portugueses sejam capazes de desempestar o ar para se tornarem bem mais do que «portugas», «tugas» ou «pulas». Para isso, a sua herança colonial chega e sobra. E muito. Há muito."
Com a devida vénia de " O Observador"