CARTA ABERTA AO DR.
MEDINA CARREIRA
Vem V.Exa agredindo persistentemente o juízo e a paciência
dos funcionários públicos e pensionistas deste massacrado País, especialmente
durante as sessões semanais do programa televisivo “Olhos nos olhos”, com uma
tal insistência que mais parece ter-se
já tornado numa obsessão.
Não pretendendo retirar-lhe o mérito de, desde há longo
tempo, vir a chamar a atenção pública para os caminhos errados que sucessivos
Governos têm vindo a seguir no descontrolo das contas públicas, principal razão
por que chegámos à actual situação de descalabro nacional, não lhe reconheço,
no entanto, razão seriamente fundamentada para colocar o ónus dos excessos da
despesa pública quase que exclusivamente sobre os aludidos grupos sociais
(funcionários públicos e pensionistas).
A sua visão do problema, assente numa mera perspectiva
contabilística e não macroeconómica, peca por isso de determinadas distorções
que importa denunciar e esclarecer, a bem da verdade e rigor que a delicadeza
desta questão naturalmente exige.
Para já não falar dos aspectos morais relacionados com os
graves erros, maus tratos, ilegalidades e incontroladas prepotências, enfim, a
gestão danosa a que as contas da segurança social foram sujeitas por parte de
todas as governações após a mudança de regime operada em 1974, que levaram a
que alguém responsável já tenha avançado que a dívida do Estado à segurança
social (vista em sentido lato) se cifraria actualmente em mais de 70 mil
milhões de euros (sem que alguém por isso se tenha alguma vez sentado no banco
dos réus), o facto é que, mesmo ignorando esta triste realidade nunca assumida
publicamente pelos detentores do poder político, por motivos óbvios, o que mais
importa agora é analisar a questão numa perspectiva isenta e objectiva e não
distorcer a verdade dos factos com visões subjectivas e parcelares que só
contribuem para aumentar a confusão de quem está menos informado.
E tenho de começar por desmascarar a mentira com que alguns
altos responsáveis políticos e conceituados comentadores vêm confundindo o
público, afirmando descaradamente que os
encargos públicos com pessoal e prestações sociais representam mais de 70%
(alguns até falam em 80%) da despesa total do Estado, quando eles afinal representaram,
em 2013, cerca de 30% dessa mesma despesa total (deduzindo às prestações sociais
concedidas as quotizações e contribuições pagas pelos trabalhadores e entidades
empregadoras). A conjugação dos dados constantes do Orçamento de Estado, do
Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social e da PORDATA assim o provam,
se forem devidamente consultados. Nunca vi o Sr. Dr. Medina Carreira desmentir
essas falsas declarações, feitas com o claro objectivo político de justificar
perante a opinião pública as medidas governamentais que têm sido prosseguidas
no sentido de fazer incidir o grosso dos necessários cortes da despesa pública
sempre sobre os mesmos grupos de cidadãos (funcionários públicos e pensionistas
com normais carreiras contributivas). Trata-se, pois, de uma inqualificável
trapaça política.
Mas então pergunto eu: será que os outros 70% da despesa
total do Estado são de facto praticamente incompressíveis? Os chamados consumos
intermédios, as subsidiações do Estado aos mais diversos agentes públicos e
privados (muitos atingindo dimensões verdadeiramente escandalosas, como é o caso
das PPP´s, dos contratos SWAP, das rendas excessivas no sector energético, e
das inúmeras fundações, associações e observatórios cuja utilidade pública
tanto tem sido posta em causa, conforme V.Exa. também tem vindo a chamar a
atenção), os encargos com entidades reguladoras (que normalmente mais se
preocupam com a defesa dos direitos dos grupos económicos do que com a defesa
dos direitos e expectativas dos consumidores), o serviço da nossa enorme dívida
pública, o aumento ocorrido nas despesas do próprio Governo como fonte
priveligiada de emprego bem remunerado, os gastos com frotas automóveis para os
detentores de cargos públicos absolutamente ostensivas e desproporcionadas
etc., não serão passíveis de maior contenção para darem um contributo
substancial ao corte dos cerca de 8 mil milhões de euros que é preciso fazer na
despesa pública, caso não ocorra o desejável crescimento económico de que o
País precisa?
Acresce que os cortes em despesas de pessoal e prestações
sociais devem ser contabilizados nos seus efeitos em termos líquidos e não
brutos, facto que, quer a Ministra das Finanças, quer V.Exa. parece terem
alguma relutância em referir. Na verdade, muito mais do que acontece com cortes
feitos em diversas outras despesas do Estado, quaisquer cortes em remunerações
do trabalho ou prestações sociais traduzem-se sempre numa directa redução de
receitas fiscais, sobretudo em IRS e IVA, que deve ser abatida ao seu valor
bruto, para se avaliar correctamente o seu peso real em termos de benefício
para as contas públicas. E não se contabilizam aqui, por óbvia dificulade
prática de avaliação, os seus nefastos efeitos indirectos como acrescido factor
recessivo da economia nacional, devido fundamentalmente à redução do consumo
interno e seu consequente contributo para o aumento do desemprego.
Mas já que V.Exa. prefere ir pelo lado da comparação de
despesas com receitas, afirmando repetidamente que a receita de impostos
corresponde aproximadamente às despesas do Estado em pessoal e prestações
sociais, o que tornaria o futuro do País insustentável, dando assim a entender
às pessoas menos informadas que o Estado não dispõe de outras receitas (algumas
até especificamente destinadas a cobrir tal tipo de encargos), há então que
esclarecer que as receitas globais do Estado têm sido aproximadamente o dobro
do montante dos impostos colectados, incluindo, entre várias outras, as
próprias receitas da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações.
Assim, relativamente às
prestações sociais só faz sentido colocar a questão também em termos líquidos,
isto é, qual a parcela dos impostos que é necessária para cobrir o deficit dos
sistemas de segurança social (SS e CGA). Ora este deficit, coberto por verbas
do Orçamento do Estado, foi, em 2013, de cerca de 13.200 milões de euros , correspondendo,
portanto, a 36,5 % da receita de impostos (que totalizou 36.270 milhões de
euros) ou a 18.2% das receitas globais do Estado (que totalizaram 72.410
milhões de euros).
Se juntarmos as
despesas de pessoal em 2013 (10.700 milhões de euros) ao deficit da segurança
social, obtemos as percentagens de 65,9% da receita de impostos e de 33% das
receitas globais do Estado.
Quaisquer outras comparações que se façam nestas matérias
correm pois o risco de se tornar em pura demagogia.
Por fim, importa ainda precisar o âmbito do conceito de prestações sociais e as
particularidades específicas de cada uma delas, matéria em que V.Exa. não tem
sido suficientemente pedagógico na missão de esclarecimento público a que se
tem proposto.
A primeira observação a fazer resulta da confusão, por vezes
levantada por quem pouco percebe do assunto ou tem perversas intenções, que
consiste na pretendida inclusão das despesas do Estado em saúde e educação
dentro do conceito de prestações sociais, o que é manifestamente errado. Este
tipo de despesas, tal como as que correspondem a actividades de apoio à
agricultura, às pescas, à indústria, ao comércio, à cultura, à investigação
científica, ao exercício das funções de soberania (justiça, diplomacia, defesa
e segurança interna), à concretização e apoios na edificação de infraestruturas
e serviços públicos de reconhecido interesse comum, etc., constitui-se como uma
obrigação do Estado no âmbito das suas responsabilidades constitucionais como
prestador de serviços públicos, enquanto que as prestações sociais assumem
sempre o carácter de compensações remuneratórias pagas pelo Estado aos
cidadãos, no cumprimento de contratos com eles estabelecidos ou em outras
situações previstas na lei normalmente relacionadas com apoios sociais da mais
diversa natureza.
A segunda observação vai no sentido de procurar dismistificar
a ideia de que as prestações sociais são uma “esmola” do Estado, cujo montante
pode assumir valores descricionariamente estabelecidos consoante a necessidade
de satisfação de outros encargos resultantes
das prioridades estabelecidas em função das opções políticas tomadas ao
longo de cada legislatura. E aqui temos desde logo que fazer uma clara
distinção entre as pensões que resultam de carreiras contributivas normais e as
demais prestações sociais.
As primeiras incluem uma
componente largamente maioritária que corresponde à capitalização dos
descontos para a Segurança Social ou para a Caixa Geral de Aposentações (e está
por provar que assim não seja), feita, ao longo de uma vida de trabalho, pelo
próprio e pelas respectivas entidades patronais (descontada a devida parcela
para o subsídio de desemprego). Se o Estado retirou verbas dos respectivos
fundos para outros fins alheios à sua finalidade, se levianamente perdoou dívidas
de empresas à segurança social, se fez aplicações desastrosas das suas
reservas, se imprudentemente nacionalizou encargos com pensões privadas
utilizando as respectivas reservas para outros fins, em suma, se mal geriu e
desbaratou os fundos da segurança social, e vêm agora os seus legítimos
representantes defender, em estafados discursos de busca da sustentabilidade,
que as pensões contributivas devem ficar pura e simplesmente dependentes da
conjuntura económica e daquilo que a actual geração trabalhadora desconta,
reduzidas ainda por cima de parcelas destinadas à recapitalização desses mesmos
fundos que foram tão leviana e criminosamente desbaratados, então como quer
V.Exa. que esta classe de pensionistas não se sinta profundamente revoltada?
Se não fosse alguma contenção até agora imposta pelo Tribunal
Constitucional, os pensionistas contributivos já estariam a sofrer em pleno, no
valor das suas pensões, a soma de vários efeitos penalizadores, que não podem
nem devem ser-lhes especificamente imputados. A sofrer pelos desmandos da
irresponsablidade e gestão danosa do Estado na segurança social, ao longo de
muitos anos; a sofrer pela antecipação de reformas na função pública com a
finalidade de se obter a redução das despesas de pessoal: a sofrer pela concessão
de pensões vitalícias a detentores de cargos públicos com reduzidas carreiras
contributivas; a sofrer pela inclusão no sistema de novos pensionistas com
contribuições para fundos privados, sem que esses fundos tenham entrado no
sistema; a sofrer pelos aumentos atribuídos às pensões não contributivas ou com
reduzidas bases contributivas; e, finalmente, a sofrer pela carga que ainda
lhes querem colocar para assegurar uma segurança adicional às novas gerações,
para as quais, invertendo o discurso oficial em relação à actual geração de
pensionistas, se pretende agora que na sua futura situação de pensionistas
deixem de depender unicamente das gerações que se lhes seguirem.
Quanto às demais prestações sociais, isto é, as que não
resultam de carreiras contributivas normais, elas correspondem afinal a
compreensíveis e legítimas obrigações de solidariedade social com que o Estado
se comprometeu, a fim de minimizar os efeitos de situações socialmente anómalas
ou injustas tais como a extrema pobreza, a inserção social dos excluídos, as
dificuldades na obtenção de emprego, as grandes deficiências físicas ou
mentais, etc. Ora estas situações constituindo portanto encargos de
solidariedade social de âmbito generalizado, devem então ser plenamente
assumidas por toda a sociedade, proporcionalmente à sua capacidade
contributiva, e não como sobrecarga a colocar maioritaria ou exclusivamente
sobre quem obteve a sua reforma após uma vida de trabalho com carreira
contributiva para a segurança social. A cobertura financeira deste tipo de
encargos deve portanto ser feita a partir dos impostos cobrados a todos os
cidadãos e não lançada injustamente só sobre uma parte deles, opção esta que
infelizmente não deixa de estar na mente de quem actualmente nos governa.
Uma das táticas seguida pelo actual Governo tem sido a de
“dividir para reinar”, procurando colocar determinados grupos sociais, de quem
espera obter apoio para impôr determinadas medidas, contra outros grupos
sociais sobre os quais pretende aplicar essas mesmas medidas. Assim, Incentiva
a “guerra” entre gerações por causa das pensões; apoia o sector privado contra
o sector público para que neste último lhe seja mais fácil reduzir direitos e
remunerações; e abre “guerras” dentro do próprio sector público para atingir os
mesmos fins. Há quem entenda que a política tem de ser assim mesmo. Acontece
que V.Exa., voluntaria ou involuntariamente, tem vindo a posicionar-se, nas
matérias atrás referidas, muito mais como seu aliado do que como analista
objectivo, isento e construtivo, o que sinceramente lamento.
Senhor Dr. Medina Carreira:
Eu não sou dos que têm medo das contas. Quero-as é
transparentes e perceptíveis, o que infelizmente nem sempre tenho visto nas
suas comunicações e diálogos.
Desculpe-me o atrevimento de um conselho de alguem que é da
sua geração. Não tenho a veleidade de lhe pedir que o siga, mas ao menos que o
leia: procure ser mais pedagógico e menos demagógico nas suas lições
televisivas. Muitos portugueses ficar-lhe-iam certamente agradecidos.
Com os meus melhores cumprimentos,
Lisboa, 25 de Julho de 2014
José Manuel Castanho Paes
1 comentário:
A lição que o Dr. Medina Carreira deu hoje no programa Olhos nos Olhos deverá acabar com as dúvidas.
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