Com a devida vénia
"Ex-alunos do Colégio Militar são sempre
gente com outra postura perante o dever e a sociedade.
A ideia de que a natureza tem horror ao
vácuo fazia parte da física na Idade Média. Mas esta lei do horror tem
corolários na vida actual: os políticos incompetentes têm horror a novas caras
nos partidos; os escroques têm horror a uma justiça que funcione; e, do mesmo
modo, os bons investidores têm horror a uma justiça que não funciona. E
podíamos continuar, mas vem tudo isto a propósito das notícias recentes sobre
Colégio Militar.
Devo declarar que não frequentei o Colégio,
embora com pena minha, porque o meu Pai entendeu que eu poderia ser seduzido
pela vida militar e para tal bastava ele. O meu irmão esteve no Colégio, por
circunstâncias familiares extremas, não se deu bem, e saiu ao fim de dois anos,
se bem me lembro. Não tenho, portanto, especiais ligações ao Colégio Militar
(CM) mas tenho muitos amigos (e dos bons) que por lá passaram.
As recentes notícias dão uma ideia do
Colégio como uma escola de sevícias e de maus tratos. Problemas de maus tratos
em escolas sempre existiram e devem ser combatidos com determinação pelas
autoridades da escola em causa, mas não faz da escola uma instituição a fechar.
Lembro-me bem de, há uns anos na minha Faculdade, terem ocorrido praxes
indignas das nossas caloiras e imediatamente o Director de então tomou medidas
para que tal não voltasse a acontecer. E não aconteceu. O CM não é excepção,
mas o que está em causa é uma tentativa de fazer desaparecer uma das
instituições mais antigas de ensino na Europa com uma longa tradição de serviço
ao País.
Recordo, com alguma tristeza, que uma das
"regalias" de um militar morto em combate em África era os filhos
terem educação gratuita no CM. Por esse facto e por as pensões de sobrevivência
serem, à época, absolutamente miseráveis (recordo-me de casos concretos), havia
sempre vários órfãos no Colégio. Fazia parte das obrigações dos graduados (ou
seja, alunos finalistas do CM) terem não só uns ratas (alunos caloiros) como
seus protegidos mas também cuidarem dos dramas de algum aluno cujo pai tivesse
morrido. Quem conhece ex-alunos do Colégio sabe que têm uma organização e uma
coesão ímpar em qualquer outra escola. Falam do Colégio com saudade e têm um
respeito pela instituição como ninguém tem da sua escola. Nela se fizeram
amizades que perduram para toda a vida e alguns dos meus melhores amigos são
ex-alunos do CM e devo confessar que são sempre gente com outra postura perante
o dever e a sociedade.
O Colégio Militar dá educação em sentido
pleno do termo. Tem um ensino de excelente qualidade e dá quadros de valores
que nenhuma outra escola garante.
Em 1975, numa acção de dinamização
organizada para os alunos do Colégio por gente afecta ao PCP -Varela Gomes,
Faria Paulino e outros- começaram a atacar a instituição e a apelidarem os
alunos de príncipes privilegiados. Um aluno dos mais novos, ou seja com uns 11
anos, levanta-se e calmamente diz que é filho de um oficial que morreu em
combate, que se não fosse o Colégio não poderia estudar e não percebia onde
estava o príncipe. Os protesto generalizaram-se (teve lugar uma gigantesca
boiada, usando a terminologia do CM) e a comissão de dinamização foi forçada a
sair pela porta dos fâmulos -porta de serviço- e não pela porta principal. Foi
o enxovalho total, apesar de os oficiais tentarem, em vão, acalmar os alunos. É
gente de fibra.
Aliás sempre foi assim. Faz parte da sua
história mais antiga que quando teve lugar o atentado a Sidónio Pais gerou-se,
naturalmente, o pânico entre a população e as unidades militares ajudaram à
turbamulta. A única unidade que manteve a calma, ajudou a população e evitou
mais mortos foi exactamente uma unidade do Colégio. Portanto, a tradição vem de
longe.
O ensino tem uma qualidade excepcional e
que não é possível sem um internato, onde os laboratórios de línguas e as salas
de estudo estão ao lado do picadeiro e da sala de esgrima. Qualquer pai, cá
fora, que tente dar a mesma formação passaria o tempo a servir de motorista do
filho. É, aliás, uma tradição muito antiga dos melhores colégios ingleses.
Como professor na universidade, sempre que
tenho conhecimento de que um aluno meu veio do CM, posso testemunhar o aprumo,
o à vontade, a auto-confiança e o profissionalismo com que está numa aula. Tudo
isto, em flagrante contraste com os colegas, especialmente os mais betinhos.
Além disso, como os alunos são tratados
por igual, têm um número (que vem antes do nome), andam vestidos com farda e os
filhos de pais ricos não se distinguem dos filhos de pais pobres. Também por
isso, o convívio democrático hierarquizado é a regra. Ainda bem.
O contraste é gritante com o que se passa
nas nossas escolas. E a anarquia, quase geral em que vive o ensino secundário,
tem horror ao Colégio Militar, obviamente. Aliás, a verdade é mais funda: a
anarquia quase geral da nossa sociedade tem horror à instituição militar. Uma
instituição organizada, como a militar, que cultiva os valores da honra, da
camaradagem, da disciplina e do dever para com a pátria, não pode ser bem vista
pela sociedade actual. A nossa vida colectiva -a civil- privilegia o oportunismo,
habituou-se aos casos de corrupção (com ou sem fundamento), tem uma imprensa
virada para o escândalo e uma televisão com novelas que são difusoras da falta
valores e da ausência dos bons costumes.
O Colégio Militar poderá acabar mas as
razões estão na nossa sociedade e não dentro dos muros do Colégio. O horror à
decência é dos indecentes."
Luís Campos e Cunha
Professor universitário
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