O
florilégio esdrúxulo
- Helena Matos
1/6/2014,
8:19
Se
agora temos pela frente um problema orçamental e mais injustiça fiscal, dentro
em breve o Tribunal Constitucional será vítima da armadilha em que caiu ao
fazer de parlamento não eleito
A
corporação queixou-se ao tribunal. O tribunal deu-lhe razão. O estatuto da
corporação ficou ainda mais blindado. Entretanto os cidadãos comuns, sobretudo
aqueles que determinadas circunstâncias da vida tornaram mais vulneráveis,
ficaram expostos a riscos ainda maiores.
Não,
não estou a escrever sobre a recente decisão do Tribunal Constitucional (TC).
Eu sei que esse devia ser o tema desta crónica. Na verdade até tentei começar
por aí. Ouvi várias vezes Joaquim Sousa Ribeiro a explicar a decisão do
tribunal a que preside e contemplei pela enésima vez as curvas e contracurvas
da tapeçaria de Batarda que cobre a parede da sala mais mediática do TC e que
invariavelmente me parecem muito mais legíveis que a fundamentação jurídica das
decisões do TC.
Mas na
verdade ao ver e ouvir Sousa Ribeiro não é Sousa Ribeiro que eu vejo e ouço mas
tão só um País onde por demissão, hipocrisia, espírito corporativo, calculismo
e medo os juízes acabaram a ocupar o espaço que devia ser do legislador, dos
médicos, dos professores, dos pais… E nesse domínio da justicialização das
nossas vidas este despacho do TC nem é o mais simbólico. É claro que é chocante
ler-se no acordão do TC que “medidas de carácter tributário oferecem melhores
garantias de fugir a uma censura” mas o caso a que me refiro no princípio deste
texto é outro.
Trata-se
de um recente despacho do Tribunal Administrativo de Lisboa que impede os
técnicos das ambulâncias de administrarem injecções de glicose a vítimas de
hipoglicemia. Segundo os especialistas qualquer um aprende em escassos minutos
a dar esse tipo de injecções e como para os diabéticos essa injecção pode fazer
a diferença entre a vida e a morte, os seus familiares têm sido ensinados pelos
serviços de saúde a ministrá-la.
E
assim, por via judicial, chegámos ao paradoxo de pais, mães, filhos, maridos,
mulheres, vizinhos, tios e primas, analfabetos ou licenciados, poderem
administrar as injecções de glicose e de os técnicos de ambulância e de
emergência estarem impedidos de o fazer. E não o podem fazer – note-se que só o
faziam sob supervisão médica – porque o tribunal entendeu que através dessa
proibição acautelava os direitos dos enfermeiros cuja Ordem avançou com uma
providência cautelar que visa impedir outros técnicos de emergência de
administrarem injecções de glicose a diabéticos.
Por
mais esdrúxulo que tal possa parecer após este despacho, em Portugal, nos casos
de hipoglicemia convém administrar a injecção antes de se chamar a ambulância
pois caso contrário tem de se ficar à espera de um profissional de saúde não
abrangido pelo despacho do Tribunal Administrativo de Lisboa o que para um
diabético pode significar a morte. Convenhamos que ao pé disto o último acórdão
do TC é uma ninharia!
Como
chegámos aqui? A esta desmesura dos tribunais na vida dos cidadãos e do País?
Em
Portugal neste momento mantém-se aberta uma maternidade, a Alfredo da Costa,
porque um tribunal entendeu que era da sua competência decidir não só que
fechar a MAC era uma «afronta directa e injustificável do bem jurídico “saúde
pública’» como ainda que o serviço de partos deveria funcionar na MAC e não no
Dona Estefânia.
Temos a
Procuradoria-Geral da República a entender que os quadros de Miró “são um
acervo que não deve sair do património cultural do país”, o que nos leva ao
absurdo de vermos a PGR e não a tutela da Cultura a determinar o que é ou não o
património cultural do país. E em sucessivos capítulos continua ainda a correr
em vários tribunais a novela da prova de avaliação dos professores. Ou mais
concretamente de dar como provado que a realização da prova de avaliação causa
“danos irreparáveis” aos professores. O que do ponto de vista pedagógico não
deixa de ser fabuloso pois os professores que não podem fazer a prova por que
ela lhes causar “danos irreparáveis” são os mesmos que avaliam todos os anos os
seus próprios alunos.
Confrontados
com esta espécie de pequeno florilégio (há anos que ando à procura de um tema
que me permita usar esta palavra!) de casos recentes em que a Justiça, cada vez
mais enfastiada com os assuntos jurídicos propriamente ditos (e com estes
frequentemente ‘resolvidos’ através de questões processuais), acabou a tratar
do que devia ser matéria dos políticos, dos técnicos e dos cidadãos, é tentador
ficarmos pela crítica ao autismo estatista desse grupo de pessoas que vive numa
redoma onde se acredita que a realidade se cria à força de decretos-lei.
Uma
redoma onde não existem despedimentos, os ordenados caem sempre no dia certo, e
cujos habitantes escrevem com uma ligeireza ofensiva para os que estão do lado
de fora desse mundo, como agora fizeram os juízes do TC que “continuará a
sujeitar-se quem recebe remunerações salariais de entidades públicas um esforço
adicional que não é exigido aos titulares de outras espécies de rendimentos”. O
esforço adicional do desemprego exclusivo do sector privado não conta para
nada?
Também
é mais ou menos óbvio que os tribunais são particularmente sensíveis ao
argumentário inter pares das corporações e assim chegámos ao absurdo da
providência cautelar da Ordem dos Enfermeiros ter sido aceite.
Igualmente
incontornável é o facto de a justiça, sobretudo ao nível do TC, não escapar à
regra nacional da superioridade moral da esquerda: um estudo da autoria de Nuno Garoupa, Sofia Amaral Garcia e Veronica Grembi,
que analisou as 270 decisões do TC relativas à fiscalização preventiva entre 1983 e 2007,
revela, e cito o artigo que o Jornal de Notícias lhe dedicou, que “os juízes do
Tribunal Constitucional são influenciados não só pela filiação ideológica e
partidária como também pela presença do seu partido no Governo. O estudo
declara que os juízes nomeados pela Esquerda estão ‘fortemente associados’ ao
voto de inconstitucionalidade. Mas que uma associação entre os nomeados
pela Direita e o voto pela constitucionalidade ‘é fraca’. (…) No entanto, o trabalho conclui ainda que esta aparente maior
sensibilidade aos princípios da Constituição por parte dos juízes de Esquerda
tende a esbater-se quando o seu partido é Governo. Os votos a favor da
constitucionalidade aumentam de 35% para 75% quando os socialistas estão no
poder, enquanto que não há grande variação nos votos dos juízes de Direita,
estando ou não no poder.”
Mas
sendo tudo isto verdade, a verdade que aqui nos trouxe é bem mais
grave: somos uma sociedade que identifica crime com erro e valores com lei.
Assim se algo não for considerado crime passa automaticamente a aceitável
quando não a defensável. Consequentemente, das famílias à classe política, a
afirmação dos valores que obriga à tomada de posição deu lugar à transferência
para os tribunais do odioso da decisão.
Foi
assim que nas últimas autárquicas, por demissão do parlamento, tivemos
candidaturas impugnadas nuns tribunais quando noutros locais do País outros
tribunais decidiam em sentido contrário. E assim tem sido com os sucessivos
orçamentos desde que a crise começou: a dimensão das reformas que é necessário
fazer e a indispensabilidade de algumas delas, sobretudo se não quisermos pedir
ajuda externa de novo nos próximos anos, nem transformar as actuais gerações de
contribuintes nos pensionistas mais ludibriados e miseráveis de sempre, teriam
obrigado a um acordo entre os partidos que subscreveram o memorando de modo a
que a questão dos chumbos do Constitucional não se colocasse com este
dramatismo. Mas aconteceu precisamente o contrário.
E o
resultado é o que agora se vê e sobretudo o que dentro de pouco tempo se verá.
E que será bem pior. Porque se agora temos pela frente um problema orçamental e
mais injustiça fiscal, dentro em breve o TC será vítima da armadilha em que
caiu ao fazer de parlamento não eleito. É apenas uma questão de tempo: se e
quando o PS tiver uma maioria expressiva o TC acabará nas ruas da amargura –
que nessas coisas como em tantas outras quem se mete com o PS leva! –, ou então
o PSD e o PS acabarão a decidir casuisticamente a alteração dos poderes do TC,
o que não é desejável.
Nesse
dia, se olharmos bem nas curvas da tapeçaria de Batarda encontraremos um
sorriso escarninho.
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