Caro
Presidente Mário Soares,
Não
podendo estar presente nesta iniciativa, apoio o seu objectivo de contribuir
para combater a “inevitabilidade” do empobrecimento em que nos querem colocar,
matando a política e as suas escolhas, sem as quais não há democracia. Gostaria
no entanto de, por seu intermédio, expressar com mais detalhe a minha
posição.
A
ideia de que para alguém do PSD, para um social-democrata, lhe caem os parentes
na lama por estar aqui só tem sentido para quem esqueceu, contrariando o que
sempre explicitamente, insisto, explicitamente, Sá Carneiro disse: que os
sociais-democratas em Portugal não são a “direita”. E esqueceu também o que ele
sempre repetiu: de que acima do partido e das suas circunstâncias está
Portugal.
Não.
Os parentes caem na lama é por outras coisas, é por outras companhias, é por
outras cumplicidades, é por se renegar o sentido programático, constitutivo de
um partido que tem a dignidade humana, o valor do trabalho e a justiça social
inscritos na sua génese, a partir de fontes como a doutrina social da Igreja, a
tradição reformista da social-democracia europeia e o liberalismo político de
homens como Herculano e Garrett. Os que o esquecem, esses é que são as más
companhias que arrastam os parentes para a lama da vergonha e da
injustiça.
Não
me preocupam muito as classificações de direita ou de esquerda, nem sequer os
problemas internos de “unidade” que a esquerda possa ter. Não é por isso que
apoio esta iniciativa. O acantonamento de grupos, facções ou partidos, debaixo
desta ou daquela velha bandeira, não contribui por si só para nos ajudar a sair
desta situação. Há gente num e noutro espectro político preocupada com as mesmas
coisas, indignada pelas mesmas injustiças, incomodada pelas desigualdades de
sacrifícios, com a mesma cidadania activa e o mesmo sentido de decência que é o
que mais falta nos dias de hoje.
A
política, a política em nome da cidadania, do bom governo, e da melhoria social,
é que é decisiva. O que está a acontecer em Portugal é a conjugação da herança
de uma governação desleixada e aventureira, arrogante e despesista, que nos
conduziu às portas da bancarrota, com a exploração dos efeitos dessa política
para implementar um programa de engenharia cultural, social e política, que faz
dos portugueses ratos de laboratório de meia dúzia de ideias feitas que passam
por ser ideologia.
Tudo
isto associado a um desprezo por Portugal e pelos portugueses de carne e osso,
que existem e que não encaixam nos paradigmas de “modernidade” lampeira, feita
de muita ignorância e incompetência, a que acresce um sentimento de impunidade
feito de carreiras políticas intrapartidárias, conhecendo todos os favores,
trocas, submissões, conspirações e intrigas de que se faz uma carreira
profissionalizada num partido político em que tudo se combina e em que tudo
assenta no poder interno e no controlo do aparelho
partidário.
Durante
dois anos, o actual Governo usou a oportunidade do memorando para ajustar contas
com o passado, como se, desde que acabou o ouro do Brasil, a pátria estivesse à
espera dos seus novos salvadores que, em nome do "ajustamento" do défice e da
dívida, iriam punir os portugueses pelos seus maus hábitos de terem direitos,
salários, empregos, pensões e, acima de tudo, de terem melhorado a sua condição
de vida nos últimos anos, à custa do seu trabalho e do seu
esforço.
O
"ajustamento" é apenas o empobrecimento, feito na desigualdade, atingindo
somente "os de baixo", poupando a elite político-financeira, atirando milhares
para o desemprego, entendido como um dano colateral não só inevitável como
bem-vindo para corrigir o mercado de trabalho, "flexibilizar” a mão-de-obra,
baixar os salários. Para um social-democrata, poucas coisas mais ofensivas
existem do que esta desvalorização da dignidade do trabalho, tratado como uma
culpa e um custo, não como uma condição, um direito e um
valor.
Vieram
para punir os portugueses por aquilo que consideram ser o mau hábito de viver
"acima das suas posses", numa arrogância política que agravou consideravelmente
a crise que tinham herdado e que deu cabo da vida de centenas de milhares de
pessoas, que estão, em 2013, muitas a meio da sua vida, outras no fim, outras no
princípio, sem presente e sem futuro.
Para
o conseguir, desenvolveram um discurso de divisão dos portugueses que é um
verdadeiro discurso de guerra civil, inaceitável em democracia, cujos efeitos de
envenenamento das relações entre os portugueses permanecerão muito para além
desta fátua experiência governativa. Numa altura em que o empobrecimento
favorece a inveja e o isolamento social, em que muitos portugueses têm vergonha
da vida que estão a ter, em que a perda de sentido colectivo e patriótico leva
ao salve-se quem puder, em que se colocam novos contra velhos, empregados contra
desempregados, trabalhadores do sector privado contra os funcionários públicos,
contribuintes da segurança social contra os reformados e pensionistas, pobres
contra remediados, permitir esta divisão é um crime contra Portugal como
comunidade, para a nossa Pátria. Este discurso deixará marcas profundas e
estragos que demorarão muito tempo a recompor.
O
sentido que dou à minha participação neste encontro é o de apelar à recusa
completa de qualquer complacência com este discurso de guerra civil, agindo sem
sectarismos, sem tibiezas e sem meias tintas, para que não se rompa a
solidariedade com os portugueses que sofrem, que estão a perder quase tudo, para
que a democracia, tão fragilizada pela nossa perda de soberania e pela ruptura
entre governantes e governados, não corra riscos
maiores.
Precisamos
de ajudar a restaurar na vida pública um sentido de decência que nos una e
mobilize. Na verdade, não é preciso ir muito longe na escolha de termos, nem
complicar os programas, nem intenções. Os portugueses sabem muito bem o que isso
significa. A decência basta.
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