"Pessoa amiga fez-me chegar a notícia de
que o ministro da Defesa (MDN) tinha
acabado de comunicar a intenção (ou
decisão?) de alterar a designação da
Marinha de Guerra Portuguesa. Passaria
a chamar-se “Armada” em vez de
Marinha.
Não costumo, por regra, dar grande
importância a mudanças de designações
de instituições, que, frequentemente,
são feitas para deixar a imagem de que
estão a ser feitas reformas quando, na realidade, é para tudo ficar na mesma.
Pode, no entanto, não ser esse o caso em apreço. O ministro não iria tomar uma
decisão desta natureza sem ter, de facto, uma intenção de mudar a natureza da
instituição. No mínimo, é uma mudança dispendiosa e de impacto político grande,
quer interna, quer externamente.
O que puderá ser essa mudança não conheço da própria fonte. Não é difícil, no
entanto, imaginar que será algo ligado ao conceito de “duplo uso” com que o atual
ministro mostrou grande entusiasmo, quando iniciou o seu mandato,
principalmente, na perspetiva de que por essa via iria otimizar as capacidades
existentes nas Forças Armadas. Mas que, ultimamente, parece inclinado a deixar
cair, numa reviravolta insólita.
Dizia então o MDN: «As Forças Armadas dispõem de recursos e competências
únicas que, em articulação com outras estruturas, permitiriam ao Estado ter
ganhos de eficiência e eficácia de resposta a crises. Trata-se da participação mais
ativa em missões de interesse público, mais próximas das pessoas, aproveitando
racionalmente as suas disponibilidades e dando valor acrescentado à sua presença
ao longo de todo o território nacional. Prevenir e combater riscos ambientais,
desastres, crime organizado, combate aos fogos florestais».1
Sobre este mesmo assunto, o Primeiro-ministro pronunciava-se, numa abertura
solene do ano letivo no Instituto de Estudos Superiores Militares, corroborando a
ideia, do seguinte modo: «Precisamos de umas Forças Armadas articuladas e
coordenadas com as Forças e serviços de segurança, pois a fronteira entre a ordem
externa e a interna dos Estados está hoje consideravelmente esbatida».
Malgrado todas estas declarações, nunca o MDN conseguiu mostrar capacidade de
pôr em prática as orientações a que, aliás, de início, dava grande relevo. A certa
altura parecia irreversível que a Força Aérea iria assumir um novo papel na
operação de meios aéreos de combate a fogos florestais, mas a intenção esbarrou
com opiniões divergentes provenientes do setor da Administração Interna, incluindo
o próprio ministro, e alguns “lobbies” conhecidos.
1
In “MDN 2015. Um novo Contrato de Confiança. Nova doutrina de serviço público” JDRI • Jornal de Defesa e Relações Internacionais • www.jornaldefesa.pt
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O MDN também tem deixado alimentar, sem uma posição clara e firme, as objeções
da Guarda Nacional Republicana (GNR) sobre o conceito de “duplo uso”, que a
Marinha tem desde sempre nas suas raízes, mas que está a limitar as pretensões
da GNR de assumir o papel de Guarda Costeira.
Para a GNR, o tema “duplo uso”, contraria uma postura baseada na ideia de que
podem ocupar-se de tudo e que mais nenhuma organização no País faz “tão bem e
de forma tão competente” como eles, seja no que for: combate a fogos florestais
com equipas de intervenção imediata tipo forças especiais, defesa ambiental,
polícia administrativa e criminal, polícia de manutenção da ordem, polícia de
segurança pública, polícia de proximidade e, agora, segurança marítima. Fico
curioso em saber se incluem nessa perspetiva também o compromisso internacional
de assegurar um serviço de busca e salvamento, que implica manter no mar meios
oceânicos em prontidão imediata.
O coronel Armando Carlos Alves, num artigo publicado pela revista “Segurança e
Defesa” 2 em que se insurgia contra a ideia de que as competências da Unidade de
Controlo Costeiro deveriam se reduzidas, insinuava que afinal, as Forças Armadas,
aproveitando a zona cinzenta entre o que é Segurança e Defesa, estavam apenas,
«para não perder dimensão, a almejar obter algumas competências policiais».
Esquecia que a Marinha exerce competências de fiscalização no mar há mais de
cento e vinte anos, desde que, em 1892, se decidiu atribuir-lhe, sob preocupações
de racionalização de estruturas, todos os meios da Esquadrilha de fiscalização
marítima e aduaneira.
Como disse acima, não sei o que, afinal, pretende o MDN. Sei, no entanto, o que os
factos recentes nos têm dito de forma muito clara. Perante uma divergência de
opiniões entre o MAI e o MDN tem sido sempre a opinião do primeiro que
prevalece, não deixando fazer o que quer que seja que as forças de segurança não
gostem. Precisamente o contrário do que faz o MDN, que continua a querer pôr
tudo em causa, sem cuidar de ouvir quem, de facto, percebe de Defesa e de se
dispor a respeitar os valores próprios da instituição militar.
É curioso constatar como é possível que, na onda de reformas por que têm passado
muitos setores do Estado, em especial o da Defesa/Forças Armadas, o campo das
Forças de Segurança tenha conseguido manter-se ao abrigo de qualquer mudança,
muito menos, de reduções de pessoal. Quando, por altura da discussão prévia do
atual Conceito Estratégico de Defesa Nacional, saiu uma “fuga de informação” a
referir uma recomendação de integração das forças de segurança, perante o
“barulho” que os sindicatos fizeram, logo veio o MAI desmentir tal hipótese.
Compreendem-se as preocupações do Governo em manter sólido o reduto da
segurança interna, principalmente na situação de crise por que passa o País, mas, a
partir de certa altura, de concessão em concessão às Forças de segurança, é a
própria autoridade e credibilidade do Estado que começa a ficar em causa.
É-me indiferente quem tem mais força política no seio do Governo e, em função
disso, ganha ou perde nas disputas de competências mas não posso ficar alheio se
daí resultam decisões que acabam por afetar o interesse nacional e aparecer ao
arrepio do necessário esforço de racionalização das estruturas do Estado. O que
seria o caso de um eventual abandono do conceito de “duplo uso” ou
desvirtuamento da sua essência, sob a ideia de que é preciso dar à GNR o que esta
pretende e o MAI não exita em apoiar.
Fico à espera de saber o que afinal significa, na prática, Portugal passar a ter uma
Armada em vez de de uma Marinha, para então voltar ao assunto. "
Alexandre Reis Rodrigues
Vice Almirante