AS INJUSTIÇAS NOS CORTES
E A POLÍTICA DE DIVISÃO DOS PORTUGUESES
CARTA ABERTA A SUA EXCELÊNCIA O
PRIMEIRO-MINISTRO DE PORTUGAL
Não pode deixar de ser revoltante para as maiores vítimas da
austeridade que este Governo seleccionou como alvos preferidos – funcionários
públicos e pensionistas que recebem acima dos mínimos de subsistência – ouvir
como principal argumento para seguir esse caminho o facto de constituirem o grosso
da despesa pública onde se torna indispensável cortar drasticamente, a bem do
necessário equilíbrio das contas públicas.
Alguns responsáveis políticos e comentadores dos OCS têm propalado
falaciosamente que essa despesa representa mais de 70% da despesa total do
Estado, quando ela (no OE para 2014) é afinal de 47%, incluindo nesta
percentagem 8% para as pensões, isto se as contas forem feitas em termos
líquidos (único critério aceitável para dimensionar correctamente o verdadeiro
peso deste tipo de despesas). Estes números foram apresentados publicamente
pelo Dr. Bagão Félix (personalidade de reconhecida idoneidade) em comentário
televisivo recente.
Na verdade, tem toda a lógica que a avaliação do peso destas
despesas na despesa total do Estado seja feita em termos líquidos, na medida em
que o montante das respectivas deduções (IRS), que é naturalmente contabilizado
pelo lado das receitas, nunca existiria se as correspondentes remunerações
ilíquidas não fossem pagas. Aliás, o citado comentador mais referiu ainda que
idêntico critério deveria ser seguido na avaliação de outras despesas públicas
que tenham contrapartidas parciais em receitas, por exemplo nas áreas da saúde
(taxas moderadoras) e da educação (propinas). A transparência sobrepor-se-ia
assim à manipulação falaciosa dos números, em que os políticos são normalmente
hábeis.
O erro que permitiu que esta habilidade contabilística, no
respeitante aos vencimentos dos funcionários públicos, tenha surgido deve-se ao
facto de, já nos fins do Estado Novo, se terem aumentado os seus vencimentos na
exacta medida do equivalente ao IRS que passaram a descontar em igualdade com
os salários dos trabalhadores privados. Na altura pretendeu-se, com essa
medida, tornar o sistema mais transparente na comparação entre remunerações
públicas e privadas e tornar o IRS extensivo a todo o tipo de remunerações do
trabalho.
Mas nos tempos que correm, a equidade fiscal e a justiça
remuneratória parece já não constituirem princípios que preocupem quem nos
governa. Se de facto assim não é, então porque razão é que o peso dos
sacrifícios tem de recair mais violenta e desproporcionadamente sobre os
funcionários públicos e pensionistas do que sobre todos as demais pessoas
singulares ou colectivas que auferem rendimentos de trabalho ou de capital?
Será porque, no caso dos funcionários públicos, talvez por
serem genericamente tidos por preguiçosos e imcompetentes pelo poder político
da actual maioria, não merecem o que ganham?
Será porque, no caso
dos pensionistas que obtiveram pensões legitimamente constituídas após uma vida
de trabalho com descontos legalmente estabelecidos para as suas aposentações e
reformas, são tidos pelo poder político vigente como um peso morto na sociedade
e que por isso não têm sequer direito a qualquer migalha do banquete orçamental
que visasse minimizar os desequilíbrios estruturais do sistema e para os quais
não se lhes pode atribuir qualquer outra culpa a não ser o de ainda estarem
vivos? Banquete onde muitos dos mais poderosos interesses económicos privados,
por vezes com obscuras conivências políticas, se continuam a sentar para
reclamar gordas fatias do “bolo público”, aumentando assim as suas próprias
gorduras (algumas até tresandando a corrupção) à custa do contribuinte? Duvido
mesmo que este tipo de gorduras tenham alguma vez estado incluídas no rol das
que o Senhor Primeiro-Ministro, há quase três anos, dizia tão bem conhecer, uma
vez que mostra uma grande relutância em lhes tocar, preferindo antes ir
rapá-las aos corpos emagrecidos dos mais fracos, colocando estes, e cada vez em
maior número, em tristíssimas situações de desespero, como tem sido largamente
divulgado pelas redes sociais e por alguns OCS mais sérios. Porém, o Senhor
Primeiro-Ministro, no alto da sua arrogância, teve até o desplante, há algum
tempo, de classificar as lamentações dos que se sentem esbulhados como
“pieguices”, bem demonstrando a sua manifesta insensibilidade social e um
lamentável desrespeito pelos seus concidadãos.
Mas temos de ir ainda mais longe, Senhor Primeiro-Ministro!
Já o ouvi afirmar, bem como a alguns Ministros do seu Governo e Deputados dos
partidos da actual maioria parlamentar, o seguinte:
Que é justo que as pensões mais altas (agora acima de 1000
euros) sejam reduzidas, através da Contribuição Extraordinária de Solidariedade
(CES), para que:
1º. Se possa assegurar a
sustentabilidade do sistema de segurança social (CNP e CGA);
2º. Se possam manter, ou até subir,
as pensões mais baixas;
3º. Se não
penalizem mais fortemente as futuras pensões das gerações mais novas.
Desde logo, há que contrapôr ao 1º argumento que a
sustentabilidade do sistema de segurança social está a ser muito mais afectada
pelo elevadíssima taxa de desemprego (aumento dos subsídios de desemprego e
quebra de receitas) do que pelo aumento da esperança de vida (aliás esta última
tem sido considerada desde 2004 no cálculo das novas pensões através do factor
de sustentabilidade). Se o desemprego atinge transitoriamente valores muito
superiores àqueles para que o sistema foi desenhado, não é justo que sejam só
os pensionistas a suportar toda a carga dos encargos necessários ao
reequilíbrio do sistema por essa razão.
Assim, toda a sociedade deveria contribuir para esse esforço
através de verbas inscritas no Orçamento do Estado. E se não há a coragem ou a
vontade política para ir buscar os necessários recursos, certamente com menores
efeitos recessivos para a economia, aos escandalosos contratos das PPP´s e
SWAP´s, às rendas energéticas excessivas, aos moralmente injustificados
benefícios fiscais, etc., então que se aumentem os impostos (sobretudo o
IRS), porque assim os sacrifícios seriam realmente partilhados mais
equitativamente por todos os cidadãos com capacidade contributiva.
Quanto ao caso especial da CGA, o Senhor Primeiro Ministro
sabe tão bem como eu que a decisão de os funcionários públicos admitidos desde
2004 terem passado a descontar para a
CNP e não para a CGA, a de o Estado só ter começado a contribuir para esta
última como entidade patronal desde há poucos anos, a de se ter concretizado
uma acentuada redução de efectivos baseada em severas restrições nas admissões
e na criação de condições que conduziram à antecipação de muitas aposentações e
reformas, não constituiram propriamente factores de gestão cuja culpa possa ser
atribuída aos actuais pensionistas. Aliás, se o benefício líquido nas despesas
do Estado obtido com a redução de efectivos e as reformas antecipadas
revertesse directamente para a CGA, talvez não houvesse razão para se falar de
riscos da sua insustentabilidade durante muito tempo.
Em relação ao 2º argumento, não duvido que possa constituir
um dever de justiça social manter ou até subir as pensões que se situam em
patamares de extrema pobreza (a maioria delas com reduzidas ou mesmo nenhuma
carreira contributiva), mas aqui mais uma vez afirmo que o correspondente
esforço de solidariedade deve ser distribuído por todos os cidadãos e não só
por aqueles que obtiveram pensões em resultado das suas extensas carreiras
contributivas. Carreiras contributivas essas que na sua grande maioria
corresponderam ao nível de responsabilidades e competências dos respectivos
desempenhos profissionais, ao longo de uma vida de trabalho.
Num regime verdadeiramente democrático, a solidariedade social é um dever de todos os cidadãos que disponham de
efectiva capacidade contributiva, através de um esforço naturalmente
proporcional ao seu nível global de rendimentos, e não deve ser imposta
descricionária e despoticamente a um único grupo de cidadãos. Fazê-lo é
considerá-los como párias da sociedade a que pertencem! E é esta a incontornável razão por que os
pensionistas atingidos se sentem esbulhados e os leva a manifestar a sua
profunda indignação. Por serem tidos como uma minoria com pouco peso eleitoral
e fraca capacidade reinvindicativa, Vossa Excelência permite-se desprezar os
seus legítimos direitos. E isto faz jus ao tão propalado “slogan” de que “este
governo é fraco com os fortes e forte com os fracos”.
Argumentar em abstacto que as pensões são muito altas para as
disponibilidades financeiras do País e que os impostos não podem ser mais
aumentados é mais uma desonesta falácia política que só visa pôr os
trabalhadores activos contra os pensionistas, ou seja, fomentar um conflito
intergeracional. E afinal os impostos são mesmo aumentados, só que recaiem
violenta e exclusivamente sobre uma parcela limitada de pensionistas.
O mesmo raciocínio se pode fazer em relação aos cortes nas
remunerações dos funcionários públicos, que na prática têm um efeito
equivalente ao do lançamento de um imposto que só a eles se lhes aplica. Neste
caso, por também serem justificados como indispensáveis cortes na despesa
pública em alternativa ao aumento de impostos, a estratégia implícita é também
a de acirrar o conflito entre os trabalhadores privados (a maioria) e os
funcionários públicos (a minoria), o que se ajusta à matriz ideológica
neo-liberal do actual Governo no sentido da pretendida redução drástica do peso
das funções e serviços do Estado na sociedade. E uma situação de crise
financeira é sempre mais favorável à
prossecução de tal objectivo.
Por fim, analisemos o 3º argumento, isto é, em que medida é
que o montante das pensões pagas actualmente se reflecte na sustentabilidade
das futuras pensões.
Como introdução à questão, parece-me importante referir a
existência de estudos que revelam que a dívida acumulada do Estado à Segurança
Social desde 1974, com as devidas correcções actuariais, se cifraria hoje em
cerca de 70.000 milhões de euros (quase tanto como o empréstimo proporcionado
pela “troika”). E disto não pode ser assacada qualquer culpa aos pensionistas.
Considerando a gigantesca dimensão do referido número, seria obrigação de um
Estado verdadeiramente transparente proceder a uma auditoria às contas da
Segurança Social, desde o início do regime democrático instaurado há 40 anos, e
divulgá-los através de um Livro Branco (há quem diga que seria um “livro
negro”). O povo português poderia assim aperceber-se dos possíveis desmandos,
incompetências, gestões danosas, injustificados perdões de dívidas ou prescrições
das mesmas, eventuais desvios ilícitos de verbas dos respectivos fundos,
efeitos ruinosos resultantes da incorporação de fundos de pensões privados,
etc., etc., ou até das medidas acertadas que possam ter sido tomadas para
tentar reequilibrar o sistema. Contudo, tenho fortes razões para crer que, se
essa iniciativa não partir da sociedade civil, nunca chegará a ver a luz do
dia.
Na verdade, bastaria que um terço ou um quarto dessa
monstruosa dívida não se tivesse verificado para que o nível de reservas do
fundo de estabilização da SS não tornasse credíveis quaisquer dúvidas que agora
se quisessem levantar sobre a sustentabilidade do sistema num prazo bastante
dilatado. No entanto, como se trata de uma hipótese sem qualquer utilidade
prática, o que se exige do Estado de
Direito em que supostamente vivemos, é que aqueles que dirigem os destinos do
País tenham consciência de que não podem, pura e simplesmente, passar uma
esponja sobre as responsabilidades passadas por erros ou omissões do Estado que
tiveram nefastas consequências no futuro de determinado conjunto de cidadãos e,
lavando as mãos como Pilatos, fazer recair exclusivamente sobre esses mesmos
cidadãos todo o ónus de tais erros ou omissões. E é na realidade o que está a
acontecer com os pensionistas, com toda a carga de injustiça e imoralidade que
isso acarreta.
De facto, em consequência dos citados erros ou omissões
políticas, o sistema de Segurança Social, no que às pensões respeita, foi
progressivamente passando de um sistema de capitalização das contribuições dos
trabalhadores e dos patrões (o Estado-patrão só muito recentemente começou a
cumprir esse seu papel em relação à CGA) para um sistema essencialmente de
redistribuição em que as gerações activas acabam por estar a pagar uma
substancial parcela das pensões em pagamento, num chamado “compromisso
intergeracional”. O sistema foi assim transformado, repito, não por culpa dos
pensionistas, mas sim por culpa de
políticos com responsabilidades nesta matéria, que passaram por sucessivos
governos.
Porém, se esta é a triste realidade a que chegámos,
certamente irreversível pelo menos durante largos anos, então parece-me que, no
presente, as gerações activas têm mais
que se preocupar com os problemas que afectam a geração dos seus filhos
(elevado desemprego, baixas taxas de natalidade, etc.), uma vez que vai ser
essa geração que lhes deverá assegurar as suas futuras pensões e não os actuais
pensionistas, que nessa altura já estarão quase todos no seu eterno
descanso.
Pretender que os actuais pensionistas arquem
com o peso de cortes substanciais nas suas pensões (como está a acontecer) para
que, além de ajudarem a tapar buracos orçamentais de outra natureza, contribuam
ainda para reforçar o fundo de estabilização da Segurança Social com vista a
assegurar futuras pensões, é uma revoltante crueldade que só pode passar pela
cabeça de quem não se rege pelos mais elementares princípios éticos!
Mas infelizmente,
também nesta matéria, o actual Governo tem contribuído, através de alguns dos
seus fiéis defensores com audiência nos OCS, para que estrategicamente seja
criado um clima de conflito intergeracional favorável ao desenfreado ataque
lançado contra os pensionistas.
E, todavia, de entre os pensionistas tão impiedosamente atacados,
quantos se sacrificaram para que os seus filhos da actual geração activa
pudessem ter condições para singrar na vida e vêem como pagamento desse esforço
a ingratidão do Estado? Quantos, apesar dos cortes, continuam a ajudar
financeiramente os seus filhos desempregados (ou com salários miseráveis) para
que eles possam subsistir e assegurar que os netos não passem fome? Quantos
deixaram de poder honrar compromissos financeiramente sustentáveis antes dos
violentos cortes que sofreram? E quantos já têm de optar entre medicamentos ou
alimentação? Infelizmente são muitos, e cada vez mais, Senhor
Primeiro-Ministro!
A profunda desumanidade e muito fraco sentido de justiça que
Vossa Excelência recorrentemente tem demonstrado nas suas atitudes e decisões,
várias delas em completa oposição às suas promessas eleitorais, levaram-me a
perder totalmente a consideração que gostaria de ter pelo Primeiro-Ministro da
minha Pátria. E bem me pesa na consciência o facto de ter-me deixado enganar ao
dar-lhe o modesto contributo do meu voto para a colocação de Vossa Excelência
no alto cargo que ocupa.
Lisboa, 06 de Fevereiro de 2014
José Manuel Castanho Paes
(Pensionista da CGA nº 0062425-00)
(Associado da APRE! nº 845)
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