sábado, 15 de fevereiro de 2014

É TRISTE LEMBRAR

"Era uma tarde de sábado, de chuva miudinha, igual a tantas outras. Gaspar Castelo-Branco tinha amigos para jantar e faltava-lhe o queijo. À primeira aberta, já ao cair da noite, resolve dar uma saltada ao comerciante da zona. Saiu, por uns minutos. Foi morto com um tiro na nuca, disparado à queima-roupa, no passeio em frente à casa onde morava.
Era véspera de eleições, dia de reflexão. Os portugueses ficaram com que pensar, até ao dia seguinte pelo menos: o terrorismo em Portugal não é uma abstracção, existe mesmo.

O assassinato, a sangue frio, de um homem que era então o director geral dos Serviços Prisionais, poderá ter sido um choque para a opinião pública ou para aqueles que têm por dever o ofício de lidar com o fenómeno, mas não suscitou a indignação que seria de esperar (veja-se o que acontece por esse mundo fora em casos semelhantes). Não houve manifestações, campanhas de imprensa, abaixo-assinados de protesto, proclamações de repúdio. Foi este jornal dos poucos a fazer imprimir diante do “cobarde assassinato” uma posição de revolta, perplexidade e preocupação.

Outros calaram-se, confirmando que o Dr. Castelo-Branco tinha razão quando dizia ao nosso repórter: “se me derem um tiro quero ver como reagirão os grandes defensores dos direitos humanos…” Os grandes defensores viraram a cara para o lado - é um facto. Mas até nisso a morte do director-geral das cadeias teve importância: desacreditaram-se os grandes defensores.
Gaspar Castelo-Branco era um homem marcado e sabia-o.
“Tem recebido ameaças?” perguntou-lhe Manuel Arouca, quando com ele contactou para conversar sobre a situação das prisões. “Constantemente” – foi a resposta. “E não tem medo de ser morto?”
O director-geral encolheu os ombros. Alguns amigos, poucos, falariam mais tarde de “coragem, verticalidade, sentido do bem-comum, cumprimento do dever”. Castelo-Branco assumiu as suas responsabilidades, todas. Em algumas circunstâncias terá assumido mesmo “perante a demissão de outros, responsabilidades que verdadeiramente não lhe cabiam”, como afirmou a propósito o deputado Nogueira de Brito, seu amigo.
Terá sido o que se passou por exemplo quando foi preso em Portugal um homem que dizia chamar-se Al-Awad, membro do célebre grupo terrorista de Abu Nidal e aparentemente culpado de ter assassinado em Montechoro o dirigente da OLP Issam Sartawi. O próprio Abu Nidal, de seu nome verdadeiro Sabril Khalil el Banna, começou a telefonar ao director-geral Castelo-Branco, ignora-se por recomendação de quem. O chefe terrorista exigia que libertassem ou deixassem fugir o seu militante. Dava sugestões de como isso deveria fazer-se: “numa transferência de prisões”, “bastava que os guardas fossem mijar” e “a carrinha ficasse abandonada o tempo suficiente”. Seria preciso é claro prevenir atempadamente o grupo Abu Nidal da operação e deixar livre campo aos seus operacionais para fugirem com segurança do País... Castelo-Branco recusou indignado. Passou a mandar gravar pela DCCB os telefonemas que continuou a receber de Abu Nidal, cada vez mais ameaçadores. Soubemos que pelo menos um magistrado recebeu idênticos telefonemas e pressões. Al-Awad acabou por ser libertado cumprida mais de metade da pena a que foi condenado “por uso de passaporte falso”, menos de 24h depois Gaspar Castelo-Branco ter sido assassinado, por coincidência, certamente.
Na morte de Castelo-Branco o caso Al-Awad não passa de um “fait divers”. Ele dizia ao nosso colaborador Manuel Arouca: “… sou sempre eu o responsável. Os FP fogem: sou o responsável por não lhes dar um regime mais duro. Não cedo à greve da fome dos FP: criticam-me porque estou a ser duro demais. Os outros tiram a água do capote”.
Em não ter cedido à greve da fome dos FPs, poderá residir a explicação da sua morte. Soube-se depois – e sabia-o o Director-Geral desde o início – que aquela greve da fome não era para levar muito a sério. Mas os ecos dela, que então chegaram à opinião pública, eram de partir os corações: os réus, um pelo menos, estava a morrer, já tinham entrado também em greve da sede, em 48 horas, teríamos não sei quantos “Bobby Sands” na penitenciária de Lisboa. Passaram-se vários dias. Um advogado em Monsanto falava de “comportamento criminoso” do responsável prisional e anunciava uma queixa-crime contra Gaspar Castelo-Branco. Depois, enfim, quando os “media” já desesperavam de poder noticiar o aparecimento de um “Bobby Sands” entre nós, a greve acabou e ninguém mais voltou a falar do assunto. E quando o réu João Gomes apareceu a depor em Monsanto, ágil como uma gazela, ninguém se lembrou de notar que ali estava o recordista mundial de greves da sede. A menos que – nós não queremos acreditar – o seu advogado tenha mentido. Gaspar Castelo-Branco não cedeu à greve, ou pseudo-greve da fome porque, dizia ele, “em nenhum País da Europa, um governo cede a greves da fome” e “mesmo os grandes defensores dos direitos humanos, pouca importância lhes dão”.
Nisso também o comportamento do ex-director geral foi exemplar. Será difícil no futuro encontrar justificação para cedências dessas. Pagou com a vida, Gaspar Castelo-Branco, morto pelas FP's ao cair da noite do dia 15 de Fevereiro, véspera de eleições. Nada mais será como dantes. Mesmo se numa das celas do EPL continuar escrito, sem reacção dos actuais responsáveis prisionais um dístico deste teor: “morte ao Castelo-Branco”. E depois em letra mais recente: “Este já está”.
Julgamos que os responsáveis do aparelho de estado têm a obrigação de mandar apagar este “graffiti”: quanto mais não seja pelo respeito devido ao mortos!

Hoje passam 22 anos sobre o cobarde assassinato do meu pai e por isso decidi reproduzir aqui o artigo do meu amigo José Teles, publicado no jornal "O Semanário" a 27 de Dezembro de 1986.

PS: As FP 25 de Abril foram responsáveis por 18 atentados mortais, entre os quais um bebé de dois anos e vários cidadãos inocentes. Até hoje não houve por parte dos membros da organização qualquer sinal de arrependimento. A última vítima foi o agente Álvaro Militão que caiu no cumprimento do dever, num cerco a fugitivos das FPs em 1986. Mas não foi só aos mortos que o País não mostrou o seu reconhecimento e gratidão: funcionários corajosos, agentes da Judiciária, da Direcção Geral do Combate ao Banditismo, juízes como Martinho de Almeida Cruz, Adelino Salvado e procuradores como Cândida Almeida, entre muitos outros."


In "blogue 31 da Armada"


Gaspar Castelo-Branco – foi decidido esquecê-lo

Com este título, o hoje moribundo jornal “O Semanário”, nomeava Gaspar Castelo-Branco como a figura nacional do ano de 1986.

Era Director-Geral dos Serviços Prisionais quando, a 15 de Fevereiro de 1986, véspera da segunda volta das eleições presidenciais, foi assassinado pelas FP-25 Abril com dois tiros na nuca. Foi o mais alto cargo dirigente do Estado a ser vítima de um brutal e cobarde ataque no pleno exercício das suas funções.

Nessa altura, os terroristas das FP-25A, por excesso de tolerância e decisão política, estavam em regime de cela aberta e misturados com presos de delito comum. Após a fuga de um grupo dos mais perigosos terroristas da Penitenciária de Lisboa, em Setembro de 1985, impôs medidas e condições duras de isolamento e separação entre reclusos. Estas eram contestadas pelos terroristas com uma pretensa “greve da fome”. Não cedeu. “Em países ocidentais os governos não cedem às greves da fome e pouca importância lhes dão” dizia. Mas por cá, era constantemente pressionado pela Comissão Parlamentar de Direitos Liberdades e Garantias, em particular por alguns deputados socialistas, bem como alguns movimentos cívicos de duvidosa parcialidade, mas que obtinham ainda assim algum eco na imprensa.

Perante as críticas da comunicação social e dos ditos movimentos, o Ministro da tutela, Mário Raposo, declinava responsabilidades encaminhando-as para o seu director-geral, como se a orientação deste não fosse tomada de acordo com o próprio Ministro. O culpado seria o Director-Geral. Perante a demissão dos seus superiores hierárquicos e o silêncio imposto pelo governo, Gaspar Castelo-Branco assumiu as responsabilidades, que verdadeiramente não lhe cabiam, em circunstâncias particularmente difíceis. Só isso fazia sentido: por personalidade era um homem corajoso e frontal com um enorme sentido do dever e do bem público. Tornou-se o bode expiatório e pagou-o com a vida.

O Governo acobardou-se e quinze dias após o seu brutal assassinato, os presos retomaram a cela aberta durante o dia, apenas fechada durante a noite. Conforme escreveu na altura José Miguel Júdice, parecia que afinal o assassinato teve uma justificação e uma razão de ser.

A partir desse dia, o País apercebeu-se que o terrorismo era uma ameaça real. Nos dias seguintes, Cavaco Silva, então primeiro-ministro, mudou-se com a família para a residência oficial em São Bento. Todos os ministros, sem excepção, passaram a andar com guarda-costas e escoltados por vários seguranças pessoais. Os juízes e procuradores do processo FP-25A passaram a ser guardados dia e noite, pernoitando, às vezes, em locais alternados e sempre secretos.

Apesar disso o Presidente da República em exercício Ramalho Eanes ou o recém-eleito Mário Soares não estiveram presentes no enterro tal como faltou o primeiro-ministro Cavaco Silva. Não houve um gesto visível de apoio público à vítima pelos seus superiores hierárquicos e membros dos órgãos de soberania. Curiosamente, nesse mesmo mês, na vizinha Espanha, um agente da Guardia Civil era assassinado pela ETA. O seu funeral teve honras de estado e contou com a presença de Felipe Gonzalez e Juan Carlos.

“Se me derem um tiro, como reagirão os defensores dos direitos humanos, os mesmos que pretendem condições mais brandas para os terroristas?” - afirmava numa entrevista a um jornal 15 dias antes de morrer. A verdade, é que a sua profecia se realizou e não houve um único acto de repúdio público aos ditos movimentos.

Em Outubro do mesmo ano começava o julgamento da organização. O maior fracasso do Estado de Direito do Portugal democrático. Não conseguiu condenar quem contra ele atentou.

Mário Soares, com uma visão muito própria sobre a justiça, preferiu primeiro indultar e depois amnistiar as FP-25A com total passividade do governo PSD. Preferiu cumprimentar Otelo Saraiva de Carvalho após a sua saída da prisão e recusou uma legítima condecoração, proposta pelo governo, para o mais alto funcionário do Estado a cair no cumprimento do seu dever no Portugal democrático. Para ele, as vitimas e as suas famílias eram um pormenor desagradável num processo que queria resolver politicamente.

O tempo pode atenuar a dor de um filho, mas não apaga a vergonha que o País sente por não ter sido feita justiça: os assassinos não cumpriram a pena, apesar de julgados e condenados em tribunal, e as vítimas foram esquecidas.

[Manuel Castelo-Branco]

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