Saudades do Conselho da Revolução
por Jorge Silva Paulo, capitão de mar e guerra
(reserva)16 maio 2013
O Conselho da Revolução foi uma curta exceção à supremacia civil adotada pelo
Estado Novo e no pós-1982, mas parece que deixou saudades da tutela política e
autonomia das Forças Armadas (FA) entre muitos militares, até no ativo.
Expressão das saudades: as frequentes declarações de militares no espaço
público a defender modelos de atuação das FA desviantes da Constituição (CRP)
pós-1982 e do controlo civil; as que discutem a legitimidade do poder político,
ou de "os políticos" em geral, para dirigir superiormente as FA e até governar o
País (vide o revivalismo da "Carta de Mouzinho ao Príncipe", apelos a limites
extraconstitucionais à ação governativa ou a pretensão de vetar governantes);
apelos à intervenção das FA na governação (ignoradas em geral - um subtil sinal
de maturidade democrática); ou a elaboração de cenários cuja exoticidade revela
desejo de mais recursos para as FA.
É bom recordar Churchill: "A democracia é a pior forma de governo imaginável,
à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Um dia poderá surgir um
regime melhor do que a democracia. Mas aquelas saudades sugerem desejos de
regimes indesejáveis, embora maquilhados com fins louváveis.
As chefias militares têm-se demarcado formalmente, e bem, das saudades (salvo
a "Marinha de duplo uso"). Não passarão de "ar quente" ou retórica de grupos de
pressão, num regime livre e dinâmico, e refletirão as "dores" de adaptação à
supremacia civil e à retração a que as FA têm sido sujeitas desde 1982 - que
poucos militares, como os burocratas públicos, aceitam a sorrir.
Uma análise mais profunda revelará a ausência do Estado de direito
democrático na formação básica dos militares. Não se trata dos militares serem
juristas; mas todos têm de interiorizar o imperativo da supremacia civil e saber
o que prescrevem e como se interpretam a CRP e as leis que regulam a defesa (e a
segurança interna, na qual vários militares servem o País), pois juraram
cumpri-las e guardá--las - "a força pública é obediente; nenhum corpo armado
pode deliberar". Tal formação é decisiva no caso dos oficiais: são os dirigentes
e é inconcebível dar-lhes assessoria jurídica para fundamentar cada uma das suas
decisões, pelo menos quanto à legalidade. Sim: a lei é para cumprir sem
enviesamentos e não é "corrosiva" nem um menu.
Poucos contestarão que a supremacia civil, inerente ao Estado de direito
democrático, visa garantir que quem tem as armas não as usa para mudar o poder
político contra a vontade soberana do povo (que não se avalia em sondagens) nem
para extrair benefícios corporativos; até porque os militares são preparados
para usar a força até à destruição, se for preciso. Mas as oportunidades podem
surgir e "a carne é fraca", pelo que é melhor afastar as FA de cenários
domésticos; podem apoiar autoridades civis, mas não podem ter competências
próprias no interior e muito menos dirigir polícias.
Desde 1982, a implementação da supremacia civil sobre as FA cingiu-se a
controlo: promulgação de leis e afetação global dos recursos, lentamente e com
incongruências e lacunas; esqueceu o conteúdo da formação básica dos militares e
a devida doutrinação no regime de que são um pilar. Sem surpresa, o
corporativismo militar expandiu-se e preencheu esse vazio, como se viu com a
"Marinha de duplo uso".
É essencial aproveitar a reforma "Defesa 2020", centrada na (necessária)
racionalização de recursos e estruturas, e tornar a formação básica dos
militares, e sobretudo dos oficiais, capaz de garantir que eles sabem o que é o
Estado de direito democrático que juram defender, e que o defendem .
Artigo publicado no DN. Com a devida vénia
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