sábado, 15 de novembro de 2008

SERÁ QUE OS LOBOS AINDA UIVAM?


Com a devida vénia



Entre Junho de 1991 e Setembro de 1994, quando era ministro da Defesa do governo do Prof. Cavaco Silva o Dr. Fernando Nogueira, as Forças Armadas foram objecto de uma profunda reforma, que, entre outras vertentes, incidiu drasticamente na redução do número de oficiais e sargentos do QP. Nessa época, vivendo-se um período que hoje podemos classificar de “vacas gordas”, não se invocava, como agora, qualquer crise em curso, mas tão-só a indispensável racionalização dos meios e o necessário redimensionamento das FA. Parecia, portanto, que o poder político achava que ainda se justificava a existência de FA.
Todavia, enquanto para a opinião pública se fazia passar esta compreensível mensagem,
no mesmo cenário de abundância que então se vivia, havia já alguns anos que o poder político
iniciara os cortes na retribuição dos militares das FA. No quadro que se segue, comparando a
evolução dos vencimentos-base de quatro categorias de servidores do Estado, poderá constatarse como o tratamento de desfavor ia já bem lançado.
Enquanto isto se passava, a Instituição Militar tinha um comportamento sereno e os Chefes militares não podiam queixar-se do ruído produzido por associações profissionais de militares (APM), porque elas ainda não existiam. A tropa estava disciplinada e muda e os Chefes, provavelmente, estariam a desenvolver o melhor dos seus esforços no sentido de obter para os seus subordinados as recompensas que a mais elementar justiça impunha – isto, claro, sempre no pressuposto de que se justificava a existência de FA em Portugal. Todavia, o resultado estava à vista. No meio da maior serenidade, o estatuto retributivo dos militares continuava em queda.
Perante a mais que patente incapacidade das chefias militares para resolver o problema,
foram-se afirmando as APM, as quais, obviamente, não podiam desempenhar as suas missões
nos mesmos moldes cordatos e submissos dos CEM’s. Parece que ainda há quem não entenda
esta verdade elementar: no preciso momento em que se constituíram as APM, ruiu uma parte
substancial do prestígio dos chefes, os quais deixaram de representar os militares junto do
poder político, passando a ser vistos como representantes do poder político junto dos militares.
Não se questiona, evidentemente, a representatividade que mantêm no tocante às FA enquanto
Instituição que cumpre missões.
A última década foi já bastante marcada pela crescente visibilidade das APM. Mas essa
visibilidade tem sido, mesmo assim, de frequência muito moderada. Quer isto dizer que
chegam a decorrer vários meses entre duas “campanhas” consecutivas. No intervalo dessas
“campanhas”, o país e o poder político esquecem os militares. Ninguém se lembra de
aproveitar esses tempos de acalmia para discutir serenamente a situação das FA, dos militares
e, até – PORQUE NÃO? – se se justifica a existência das próprias FA. Ora, uma tal atitude –
do governo, da sociedade, dos media – só vêm demonstrar que, em Portugal, se não se “agitar”
de algum modo o cenário castrense, ninguém quer saber da sua existência. O pior é que,
quando esses momentos de agitação ocorrem, a discussão que se segue não é feita sobre as
razões da mesma, mas sim sobre a sua forma. Analisando este estranho fenómeno, somos
obrigados a concluir que a questão já não é apenas a de “ninguém querer saber”, passando a ser
também a de não quererem que se saiba.
Diga-se, em abono da verdade, que esta postura nem é apanágio exclusivo da sociedade
civil. Também se manifesta entre número apreciável de militares. Só que, neste caso –
exemplificando muito bem as contradições existentes em muitos espíritos –, mesmo entre os
militares que se sentem claramente abandonados pela nação, verificamos que predominam as
censuras à forma como as questões da retribuição são expostas na praça pública, acabando,
invariavelmente, por se desligarem do debate sobre o conteúdo. Ando há vários anos à espera
que algum destes devotados camaradas se digne sugerir um método que, no maior respeito pela
democracia e pela melhor tradição militar, resolva o delicado problema que resulta do poder
político pretender ter militares simultaneamente baratos e mansos.
Assim, não faz sentido que se critique a «mediatização» dos problemas militares,
porque a ausência dessa mediatização constituiu uma das traves mestras do esquecimento a que
as Forças Armadas têm sido votadas. Não faz sentido que se defenda publicamente, como há
anos fez um CEM, que «aqueles que na procura da dignidade e prestígio esquecem a sua
condição militar não são dignos do prestígio que pretendem alcançar», porque,
manifestamente, o «esquecimento da condição militar» não foi obra desses militares mas sim
do poder político, com o qual a maioria dos chefes militares têm convivido com a duvidosa
«serenidade» que tanto gostam de recomendar aos seus subordinados.
Deve reconhecer-se que, relativamente às FA e aos militares, a cegueira da sociedade
não é total. Aqui e além, fazem-se ouvir vozes atentas e sensíveis que descodificam muito bem
os pecados que o poder político vem cometendo. E não precisamos de lançar mão de exemplos
recentes, porque os problemas vêm de longe e perdem-se no tempo. Em editorial do
«Expresso», de 30 de Março de 1997, escrevia, a propósito, o seu director: «Constituindo,
durante décadas, um dos pilares da Pátria, a tropa tem vindo a tornar-se uma instituição
periférica, inteiramente subordinada ao poder civil, aparentemente destituída de voz própria. A
perda de importância dos militares é tão notória que se torna mesmo legítimo perguntar se o
seu descontentamento valerá uma manchete.» Na mesma data, escrevia Diogo Pires Aurélio,
no Diário de Notícias: «Salvo raras e honrosas excepções, a cultura que tem predominado entre
a classe política a respeito das questões militares resume-se a dois objectivos «estratégicos»:
manter em sossego as casernas; gastar com elas o estritamente necessário (...) desde que se deu
o «regresso aos quartéis» as questões militares dir-se-ia terem sido reduzidas, na melhor das
hipóteses, a um «mal necessário», do qual se fala apenas uma vez por ano e a título de alínea
penosa e prosaicamente inscrita no Orçamento de Estado.»
Vejamos, agora, em que cenário se encontravam os militares portugueses nas vésperas
da entrada em funções do governo presidido pelo 1.º ministro José Sócrates.

Como pano de fundo, dominava a questão de uma prometida reaproximação das
retribuições dos militares às categorias de referência (V. Quadro). Essa promessa, nunca
cumprida, fora adiantada, em 1999, pelo então ministro da Defesa Dr. Jaime Gama,
curiosamente no seguimento de uma bem sucedida acção de mediatização das questões
militares, levada a cabo pelas APM. Estava-se, repito, num cenário de promessa de melhoria de
condições, o que equivale a dizer que o poder político reconheceu a situação de desfavor em
que os militares se encontravam. Com a chegada do governo actual, entrou um novo cenário –
o da crise declarada e o da necessidade de “apertar o cinto”. Este “aperto”, para haver moral,
teria que ser sentido por todos. Vai daí, os militares também o iam sentir, e de que maneira.
Mas é precisamente aqui que entra em cena uma falsa questão moral, isto é, no período
de “vacas gordas”, enquanto os demais engordavam, os militares emagreciam...porque sim! No
período de “vacas magras”, os militares devem sujeitar-se às consequentes restrições, porque
não são mais do que os restantes cidadãos!
Para agravar tudo isto – não execução da promessa de melhoria e perda de benefícios
devidos à crise –, o poder político deu em não cumprir leis por ele próprio produzidas e nem
aquilo que a lei estipula paga aos militares. Uma dívida de milhões de euros em diversas
vertentes das retribuições, reembolsos de despesas com a saúde, subsídios de reinserção ao
pessoal não permanente, etc., não parecem perturbar minimamente o poder político, tão-pouco
merecendo uma reprovação que de longe se assemelhe às que são feitas à forma como os
militares se manifestam. Resumindo, o descalabro moral que se abateu sobre os militares das
FA teve, em sucessão, estas cinco fases:
1. Queda no estatuto retributivo face aos outros servidores do Estado
2. Promessa de melhoria não cumprida
3. Perda de direitos e níveis de retribuição
4. Não cumprimento de leis – dívida pecuniária
5. Recusa do direito à indignação
Uma nação que trata assim os seus militares tem de perguntar-se para que é que precisa
de Forças Armadas. Se já não se coloca a necessidade de alguém morrer pela pátria, então
deixa de se justificar a existência de Forças Armadas. Ainda recentemente, em artigo no
Público de 7 de Novembro, o Dr. José Miguel Júdice falava de «tropas ociosas» e aflorava uma
tese sua, segundo a qual «o Exército e a Força Aérea seriam dispensáveis, mantendo-se apenas
uma guarda costeira, uma força de intervenção rápida, forças militarizadas e de segurança e
meia dúzia de oficiais generais». Eis aqui uma proposta que, num esforço de boa-vontade,
vamos admitir ser tão sensata como o alerta protagonizado há poucas semanas pelo general
Loureiro dos Santos. Entre uma e outro, importa encontrar uma saída para este momentoso
problema. O estado de desmoralização das FA fere-as de morte e torna-as impróprias para as
missões que lhe estão constitucionalmente impostas. Urge, por conseguinte, acabar com esta
situação imoral.
Será um exagero comparar a situação actual com a que se viveu nas vésperas do 28 de
Maio de 1926. Ainda bem! O perigo está quando os alertas deixam de parecer despropositados.
Nessas alturas, normalmente, já não resolvem nada.
David Martelo
Coronel Ref.º

Sem comentários: