Cordiais saudações
R.P.Leitão,
Ainda não tinha sequer sido admitido como cadete na Escola Naval, quando recebi a primeira guia militar onde constava o meu nome, para então ser presente a inspecções médicas no Hospital de Marinha.
Nunca mais esqueci a emoção da entrada no imponente átrio do edifício, pleno de históricas alusões à sua fundação e finalidade, testemunhando com a grandiosidade austera da sua construção, a importância que o país e os seus governantes conferiam à instituição que passava a integrar.
Já incorporado na Marinha, um dos passos externos seguintes, seria a admissão como sócio do Clube Militar Naval, também ele sedeado num histórico e glamoroso edifício, em tempos a residência de um ilustre médico de Marinha, e então sede daquela colectividade prestes a comemorar o seu primeiro centenário.
Do Hospital recordo a profusão de vezes que, ainda cadete e de guia na mão, me apresentei para ser presente às mais diversas consultas e fazer alguns exames clínicos, felizmente sem outros registos para além das pequenas cáries dentárias e do acne juvenil, e quase sempre averbados à segunda-feira de manhã, o que dava imenso jeito, quer para pernoitar fora no domingo, quer para evitar a maçada das aulas do Macias e do Monteiro.
Do Clube lembro a ousadia, e também o respeito, com que o frequentava, ombreando ao almoço ou na sala de leitura com professores e oficiais generais, muitos deles já reformados, referentes da organização que tinham servido (a expressão «sem se servirem» nem sequer entrava no léxico e só por isso será aqui descabida), exemplos humanos e militares, que em cada momento ainda colaboravam, visando sempre a garantia da transposição dos valores do passado e intervindo a partir daquela tribuna privilegiada.
Do Hospital recordo mais tarde, já depois de ter estado em comissões em África, de 1966 a 1975, de ali ter sido operado pela segunda vez (a primeira tinha sido em Moçambique), em resultado de um acidente em combate, e sobretudo a extraordinária eficácia do cirurgião José Albino Rebelo, muito contribuindo nessa mesma sequência os hábeis sargentos enfermeiros fisioterapeutas para a minha recuperação acima das melhores expectativas, competência a que não foi certamente alheia a esforçada e porventura dolorosa experiência daquele médico na retaguarda de guerra na Guiné.
Do Clube lembro ainda que era sempre o meu porto seguro nos intervalos de poucos meses que passei em Lisboa ao longo daqueles anos. Mas era também aquele o local onde tantas vezes assisti, quando era proibido falar cá fora e não havia medo de falar lá dentro, às mais variadas abordagens das questões que interessavam à Marinha, enquanto instituição militar, ou que respeitavam tão só ao País, enquanto Nação obrigada pela sua História a privilegiar valores humanos, morais e patrióticos, e que por isso também respeitavam então forçosamente à Marinha.
Mais tarde, já depois da minha prematura passagem à Reserva em 1988, então no posto de capitão-de-fragata, face a diversas vicissitudes da vida e felizmente porque tenho sido saudável, e porque não dizê-lo também, porque já não conheço pessoalmente quem ali presta serviço, o que muito agilizava antes o atendimento, pouco tenho frequentado o Hospital de Marinha. Vou com regularidade ao Hospital da Estrela, porque me fica muito mais perto. Solidário, por também ter sofrido um acidente na guerra, o porteiro deixa-me estacionar o carro (uma mordomia!) e … francamente até não me incomoda que, sendo capitão-de-fragata, me tratem ali por capitão. (Ainda não cuidei de saber se tratam os contra-almirantes por contras!)
Agora, que os do meu tempo já estão no Outono da vida, tenho tido notícia de que, com regularidade, e mesmo sabendo que o Hospital de Marinha não tem serviço de urgências, muitos para ali são transportados a seu pedido quando sentem chegar a hora do aperto.
Ocorre-me que há cerca de 15 anos, numa das últimas vezes que entrei no nosso Hospital, encontrei uma velha praça que comigo servira a Marinha durante meia dúzia de anos. Tinha sido promovido a sargento ao fim de 30 anos de carreira, e eu que nem dera por isso, continuava a tratá-lo por tu. Estava então atacado pelos «diabetes», e apenas num segundo momento, quando o enfermeiro chamou o sargento Fausto (Cordeiro de Sousa) à consulta, o pude constatar. Também a mim não me corrigiu no tratamento, mas ainda assim foi a tempo de me informar, usando aquele eterno código, tão peculiar daquelas «nossas casas»: - O Hipólito destacou daqui ontem! Passado muito tempo, também o Fausto um dia viria dali a destacar para sempre. Terá sido então que compreendi melhor porque a nossa gente, que em geral e tal como eu, um dia receberam para ali a primeira guia militar e ali foram sempre tratados das suas mazelas, não querem morrer num outro hospital qualquer, preferindo finar no Hospital de Marinha e eventualmente ter o posto e o nome colocados por uma última vez na sua guia de marcha.
Aquela tem sido a última ligação à Marinha para tanta gente que a serviu, porventura a única durante muitos dos seus últimos anos!
Continuo a frequentar o Clube, mesmo depois de ter deixado de tentar jogar «bridge». Almoço com alguma regularidade, frequento as salas de leitura e sobretudo o bar, por ser aquele o local onde mais se confraterniza com amigos e camaradas. (O Zé Adriano fica desde já autorizado a mostrar as minhas contas, onde é facilmente demonstrado que bebo moderadamente).
Nestes últimos anos, embora tenham sido raras, tenho procurado estar presente, e algumas vezes até intervir, em colóquios promovidos no Clube. Talvez porque antigamente o fruto proibido e a saudável rebeldia dos oficiais de Marinha prevalecia sobre a comodidade e os interesses pessoais dos dias de hoje, comparativamente a frequência destas palestras é agora em geral muito reduzida.
Foi assim num debate com jornalistas (Rogeiro, etc.), foi assim numa conversa sobre pescas (sindicalista Piló e outros), foi assim quando da presença da primeira-dama de então, quando o tema era a Cruz Vermelha, e para não parecer mal, até seriam «arrebanhados» para a sala alguns consócios que estavam a jogar gamão.
Não foi assim quando presidiu o CEMA a uma conferência sobre o Mar que teve como convidado honra, o então Secretário de Estado dos Assuntos do Mar, e a sala de jantar com lugares marcados estava repleta de oficiais generais e superiores do activo, dos quais apenas me lembro de ter intervido um vice-almirante e um capitão-de-fragata.
Não foi assim recentemente quando o tema foi a Reforma dos Hospitais Militares, embora a esmagadora maioria dos presentes, e sobretudo dos interventores, fosse a dos sócios reformados, grande parte dos quais eram os «soixante-huitards» das gloriosas noites de antigamente no Marquês de Pombal. Não me lembro de ter estado ultimamente numa reunião do Clube em que conhecesse tanta gente, embora de alguns já não me lembrasse o nome, (problema da idade), como de resto verifiquei o mesmo em relação a mim, na outra face da moeda.
Confesso não ter estudado o dossier de informação disponível com a atenção que seria devida ao tema. No entanto fiquei ciente das razões de natureza militar, técnica, clínica e até económica que desaconselham o fecho do Hospital da Marinha. Restavam as políticas.
Para além das elucidativas explicações dos promotores e do médico convidado, o clima geral das intervenções dos assistentes foi sendo sempre, quanto a mim, de grande solidariedade corporativa, talvez demasiada.
A minha primeira intervenção, quando já próximo do final da sessão pedi para usar da palavra, centrou-se exactamente na questão da fraca ou nula participação de sócios do Activo. Sem ela, parecia-me que a leitura externa do evento podia resvalar para uma falaciosa interpretação de temor de doentes e afins perante o fecho dos seus serviços de saúde, tal como tantas vezes assistimos na TV, quando cobre os centros rurais.
A segunda questão que coloquei, quanto a mim a mais decisiva e que levou ao actual estado de coisas, tem a ver com a forma como os políticos em geral e a sua comunicação social em particular, têm vindo a preparar a opinião pública em desfavor das Forças Armadas. Como com a Educação.
Paulatinamente, e quase sempre com o silêncio dos que podiam e deviam sair a terreiro em sua defesa e em defesa da verdade e da forma de ela ser expressar sem equívocos, vão surgindo regularmente as notícias do militar que bate na mulher, do capitão-de-fragata que se apropria de fundos, do almirante que se enche à custa dos submarinos, de que o pobre país afinal nem precisa … e que culminou entre muitas outras no último 10 de Junho, quando o nosso jornal de máxima referência no combate pela liberdade do 25 de Abril, não deu qualquer notícia sobre comemorações e comemorados do Dia de Camões, detendo-se unicamente numa extensa e proeminente reportagem sobre os Fuzileiros, «os quais tinham trazido há anos, desde Moçambique e roubado à família, uma mascote que depois terão abandonado à sua sorte, sem futuro nem identidade». A cena termina com a patética e televisiva cerimónia pública de um Secretário de Estado Ex-Diversas Coisas a entregar pessoalmente um BI de Primeira Geração ao ex-mascote, promovido finalmente a cidadão nacional, agora acumulando ser um símbolo das preocupações governamentais em matéria de direitos humanos, com direito a uma muito pouco discreta viagem a Moçambique ao encontro da presumível família.
Invoquei então, na reunião do Clube, que o Ministro não tem nada a perder em votos, que é afinal o que na realidade lhe interessa, com o fim ou a redução dos três hospitais militares na cidade de Lisboa.
Tal como até hoje, muito pouco se tem feito em termos de defesa da capacidade submarina perante a opinião pública em geral, praticamente também nada se fez sobre a manutenção dos hospitais militares.
Eles, os políticos, têm absoluta consciência desta realidade, trabalham-na constantemente e quando chegar a hora mais conveniente, não irão vacilar.
Perguntei ainda, no que julgo ter sido mal entendido, se eram conhecidas no contexto do tema, as posições institucionais dos Chefes Militares junto do poder político, isto é, junto do Ministro da Defesa.
O meu ponto seria o de lamentar que não tivesse sido blindada pelo Conselho da Revolução, pela Constituição ou pelos poderes do Presidente da República a antiga forma de escolha dos Chefes de cada Ramo, embora isso apenas o escreva agora. Efectivamente passou-me naquele momento, talvez porque a minha intervenção foi sem sombra de dúvida a menos entusiasmante do serão, e eu estava, à medida que ia falando, tomando plena consciência de algum tédio que ia provocando.
Culminaria o Colóquio com a estratégia da constituição de uma Comissão constituída por dois Almirantes com provas dadas, escolha para que também terá certamente contribuído o bom senso da sua conotação política oposta, ainda um oficial superior que esteve retirado mais de trinta anos, mas que obteve grande experiência em administração hospitalar, a enquadrarem a experiência médica e militar, a reconhecida isenção e a superior estatura cívica de um contra-almirante médico naval.
Ainda no Clube, um pouco fora de horas, conversando à porta do bar com alguns camaradas, manifestei a minha convicção de que o Ministro não iria receber a referida Comissão. Um dos promotores disse-me que não, (olha que não!), que havia «links» que facilitavam a audiência, … Quem sou eu!
Apenas mais tarde viria a tomar conhecimento, através dos poucos jornais que leio e de alguns blogues que frequento, das alegadas posições públicas dos CEMGFA e CEME, o que se outro valor não teve, veio validar as minhas dúvidas expostas na reunião do Clube.
Por último, tomei também conhecimento através do blog de um antigo mestre que todos muito apreciamos, de uma oportuna referência a que o camarada Martins Guerreiro muito teria contribuído para tirar das masmorras o dito senhor... que afinal não o quis receber.
(Coíbo-me de blasfemar, pela única razão da sua não retroactividade!)
Se o Ministro não encontrou aí razões pessoais para receber o antigo Conselheiro da Revolução, que ao menos considerasse o serviço meramente de natureza política que aquele camarada, em termos pessoais e tendo em conta apenas o seu próprio estatuto de figura pública, já que creio votará num outro concelho, prestou ao seu Partido, apoiando publicamente a última candidatura socialista à Câmara de Lisboa, com declaração implícita de o fazer em detrimento da candidatura concorrente.
É este o meu contributo.
Agosto de 2010
R.P. Leitão
Sócio n.º 764 do CMN
(capitão-de-fragata)
Nota:A CACINE agradeçe a magnífica colaboração deste Camarada e Velho Amigo e publica-a com todo o gosto, esperando que crie hábito, a ele e todos os Leitores
3 comentários:
Caro Raul , li ,gostei e acho que não falhaste nenhuma no alvo !
Um abraço do Castro e Silva
Meu Caro Raúl: este texto é uma maravilha literária, mas também é um belo documento de gratidão ao HM e de homenagem a alguns amigos, como são o Costa Rebelo e o Rui Abreu, mas também o Fausto, que eu bem conheci.
Parabéns pelo conteúdo e pela forma deste excelente texto!
A. R. Costa
Como sabes tenho alguma dificuldade a lidar com estes novos meios ,fazer posts ,comentários etc
Por isso peço-te que metas na voz da abita o coment+ario que envio já tb para conhecimento do Patricio Leitão
sei
Apreciei muito este texto sobre o coloquio que fizemos no CMN e sobretudo a maneira como relata a nossa ligação ao HM desde as inspeções para cadete até á ultima guia de marcha ,tem passagens que nos fazem vibrar ,será da idade ? é possivel Parabens ao autor
No que se refere á minha pessoa impõe-se um esclarecimento eu não sabia e não sei hoje se o actual MDN estava preso em 25 de Abril de 1974 sei que essteve preso mas não sei exactamente quando ,por isso se contribui para a sua libertação foi na exacta medida em que contribui para a libertação de outros presos ,ele não me deve nada por isso ,se deve a alguem é a todos os militares que de diversas formas contribuiram para a mudança do regime
Qunto á questão do apoio politico que teria dado á candidatura de Antonio Costa á camara de lisboa ,tal não corresponde a qualquer facto real ,não me apercebi de que tenha existido um noticia nesse sentido,embora muito tarde desminto-a agora
Não prestei qualquer serviço politico ao PS ou a qualquer outro partido ,embora não tenha duvidas que vários partidos se aproveitaram das minhas acções ou ideiase
ainda se poderão aproveitar hoje ,é o risco que corremos quando agimos ou nos manifestamos.
Sempre fui e continuo livre de quaisquer tutelas politicas,sei que o Patricio Leitão não disse isso ,eu é que estou a aproveitar esta boleia para reafirmar uma posição de principio
NOTA:Comentàrio do C/Alm Martins Guerreiro sobre este post
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