quarta-feira, 24 de junho de 2009

VOU LER


A biografia de Henrique Tenreiro, patrão dos mares e do bacalhau português, que fugiu pelo Largo do Carmo no 25 de Abril disfarçado de "ceguinho" e foi enterrado em 1994 com a farda da armada brasileira, é hoje apresentada em Lisboa.
Numa altura em que a crise leva muitos a afirmar que "nos tempos do Salazar é que era", o investigador da Universidade de Coimbra Álvaro Garrido dá hoje a conhecer a rocambolesca vida de um dos mais controversos oligarcas do "antigamente".
A história da vida do "patrão" dos mares ou das pescas, como lhe queiram chamar, da autoria de Álvaro Garrido, deixa a nu a estrutura eminentemente oligárquica do regime salazarista, a coberto do sistema corporativista que Henrique Tenreiro usou a seu favor com uma mestria que não deixa de impressionar.
Editado pelo Círculo de Leitores e pela Temas e Debates, o livro "Henrique Tenreiro - Um biografia política" é apresentado hoje em Lisboa, na Fundação Mário Soares, pelo historiador Fernando Rosas e deixará o seu autor, Álvaro Garrido, "fisicamente feliz se contribuir para mostrar como o regime de Salazar foi vincadamente autoritário, numa altura em que surgem muitas declarações públicas a tentar dar uma visão diferente desta realidade".
"Este livro não se destina a julgar mas sim a mostrar essa realidade. Considero que nele fica bem provado que o Estado Novo foi de um autoritarismo feroz com alguns traços repressivos e que algumas figuras que o povoaram, sendo fascinantes, mostraram que se tratava de um sistema oligárquico", referiu.
Para Álvaro Garrido, "a biografia deste homem de má memória para a maioria da esquerda em Portugal e mesmo para muito boa gente do centro ideológico pode também elucidar fenómenos estruturantes da sociedade portuguesa relacionada com práticas oligárquicas interligadas com os vários regimes políticos, não só do Estado Novo mas da Monarquia Liberal, da I República e mesmo do regime saído do 25 de Abril de 1974".
Formalmente, Henrique Tenreiro começa por ser, ainda em 1936, apenas delegado do governo junto do Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau. Um cargo burocrático típico num regime corporativista. Muitos ficariam por aí. Não o nosso herói, que, demonstrando um vincado espírito aventureiro, cria em seu redor, como disse Álvaro Garrido à Lusa, "um poder fáctico, um polvo com longos braços, que incluiam a Legião Portuguesa, que chefiou, a comunicação social - era praticamente dono do Diário da Manhã -, a Fundação Salazar, a Liga dos Amigos dos Hospitais..."
A lista foi longa e de todo o seu conteúdo Henrique Tenreiro retirou poder e protagonismo, tornando-se mais poderoso do que muitos bons ministros, mas, como recorda o investigador, o oligarca era antes de mais um salazarista convicto (classificou o marcelismo como "um delírio imprudente") que acreditava piamente no papel do regime para a história e salvação de Portugal, e tudo fez para retribuir o que foi dele recebendo.
Foi por isso que ajudou a criar a imagem daquele que seria um dos principais temas de propaganda do Estado Novo: o regresso de Portugal à sua vocação marítima, esquecida pelos sucessivos regimes desde pelo menos a Monarquia Constitucional.
Para essa imagem é fundamental uma das suas criações mais geniais: a bênção dos bacalhoeiros, uma cerimónia anual na partida dos lugres para os mares do Norte que entre 1936 e 1942 se revestiu, segundo o investigador da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, de características vincadamente fascistas.
Esta cerimónia, em que o sagrado e o profano se misturavam numa exaltação do espírito nacional, serviu para Portugal como a recuperação do touro, congeminada por Fraga Iribarne nos tempos do ditador Franco, funcionou para Espanha: foi um importante factor de identidade e de mobilização da nação e do seu espírito, particularmente quando funcionando em conjunto com outras medidas do Estado Novo, como a "política do espírito" levada a cabo por António Ferro.
Essa força simbólica parece ter marcado toda a vida de Henrique Tenreiro e até mesmo a sua morte: zangado com uma Armada que nunca lhe restituiu o posto de almirante, amargurado pelo longo exílio no Brasil, onde morreu em 1994, Henrique Tenreiro fez questão de ser enterrado em Portugal, no Cemitério dos Prazeres, mas envergando a farda da Marinha brasileira e ostentando no caixão as bandeiras dos dois países.
A forma como lidou com a Revolução dos Cravos esteve também, no mínimo, à altura dos seus pergaminhos de extravagância.
O 25 de Abril apanha-o no Quartel do Carmo - é praticamente a única personalidade sem cargo ministerial no local e, ao seu estilo, tenta uma "fuga recambolesca" saindo do quartel por uma porta secreta e atravessando a multidão disfarçado de invisual.
Opta por se entregar a Costa Gomes, cumpre 20 meses de prisão e acaba por evadir-se, aparentemente com a conivência do Conselho da Revolução, que não sabia o que fazer com uma "encomenda" tão controversa.
"Como se disse na altura, Henrique Tenreiro não fugiu, fugiram-no", disse Álvaro Garrido, para quem, a partir daí, o tão poderoso "patrão" das pescas vive "politicamente morto" e amargurado, tentando insistentemente recuperar prestígio e o seu posto na Armada - que esta recusará até ao fim, em parte pelo papel repressivo que, ainda mero primeiro-tenente, teve em 1936 na revolução da ORA, uma sedição de marinheiros influenciada pela guerra civil espanhola.
Ao "reprimir colegas de armas hostis à 'situação', como diz Álvaro Garrido, Tenreiro mostrou a Salazar que podia contar com ele para garantir a obediência e lealdade de todo o subsistema do mar. A partir daí, foi o que se sabe e que o livro conta em pormenor.
O autor da obra, Álvaro Garrido, é professor na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde coordena o Grupo de História Económica e Social.
É também investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra e director do Museu Marítimo de Ílhavo.

4 comentários:

LUIS MIGUEL CORREIA disse...

Estou a ler o livro que recomendo. Curiosamente, a fotografia utilizada para ilustrar este vosso "post" é tirada a bordo do paquete SANTA MARIA no dia do regresso ao Tejo em Fevereiro de 1961 após o assalto.
Ao lado de Salazar vê-se o Comandante do navio, Capitão Maia. e no meio espreita o Presidente do C.A. da Companhia Colonial de Navegação, Dr. Soares da Fonseca, que em 1957 sucedeu a Bernardino Correa no cargo.
Soares da Fonseca era um salazarista activo e convicto. Foi depois Presidente da Soponata em substituição de Ortins Bettencourt, falecendo em 1969.

LUIS MIGUEL CORREIA disse...

Resta acrescentar que após este incidente o Cte. Maia foi afastado do comando do SANTA MARIA e substituido pelo Imediato, capitão Inácio Fontes Pereira de Mello Vieira, que exerceu o comando do navio até 1973, isto é até a sua venda para sucata.

Manel disse...

Muito interessantes , estes comentários.

Obrigado

Anónimo disse...

Estou a concluir a leitura do livro. Excelente biografia. Creio que a mais interessante que já se publicou em Portugal. E não precisou de ser propaganda light. Recomendo.

João Salgueiro