Gorduras saturadas
por Jorge Silva Paulo, Capitão de mar e guerra
(reserva)
As despesas públicas são as receitas de alguém" - é fácil de perceber e
mostrar. Porém, quando se fala em cortar as "gorduras do Estado" a expectativa
de tantos portugueses é de que se "corte a outros". O que coincide com a
conclusão empírica de que os portugueses se empenham em defender - sobretudo em
público e para os media em especial - uma imagem de altruísmo e com expressões,
naquele momento, bem-sonantes ou politicamente corretas; mas que evitam, na
prática, os custos das boas intenções declaradas. Acresce que ao reagirem
negativamente a expressões públicas que não são bem-sonantes ("porque não dão
esperança"...), ainda que verdadeiras, passam a mensagem aos políticos de que
preferem as ilusões às realidades; e quem concorre a eleições percebe bem isto,
como está à vista, também, nas ordens profissionais.
O recente episódio das viaturas para o Grupo Parlamentar do PS parece revelar
que a sociedade portuguesa sofre de uma "septicemia", mas devida à "bactéria"
chamada "dualismus interesseirus".
Notei que, entre tantos que criticaram Francisco Assis e Carlos Zorrinho,
estavam numerosos servidores do Estado que usufruem ou usufruíram de viaturas do
Estado atribuídas a dirigentes (viaturas pessoais) e de dotações para
representação. Não foi por acaso que a palavra que Camões escolheu para concluir
Os Lusíadas foi "inveja"; mas ninguém se considera invejoso nem dualista.
Não estou a desculpar os políticos. Mas, abreviando, muitos servidores do
Estado têm viaturas pessoais, que demasiadas vezes usam para fins privados. As
coisas não devem ter mudado muito desde que constatei que alguns dirigentes
responsáveis pela gestão das frotas de viaturas de organismos do Estado tinham
mais trabalho a gerir as viaturas pessoais do que as viaturas decisivas para os
resultados dos respetivos organismos. O que justifica que os contribuintes
paguem viaturas, por vezes com condutores, que transportam diariamente
dirigentes da administração pública entre a casa e o local de trabalho? Há
situações de urgência que poderão justificar; mas... todos os dias?
Por outro lado, bem me recordo como, em 2009 e 2010, já em período de crise,
houve uma reforma das dotações para representação pessoal. Muitos dirigentes
encaram estas dotações como um símbolo de poder e apoio à remuneração mensal,
que alguns atribuem às relativamente baixas remunerações dos dirigentes no
Estado (em média, tão ou mais qualificados do que no sector privado); fala-se em
instrumentos de motivação (até por serem sinais exteriores de poder), que os
governos admitem, para conseguirem que estes servidores do Estado não boicotem a
informação para, e a execução de, decisões políticas. Estas benesses acabaram
por se tornar nos "tesouros" por que muitos servidores do Estado anseiam nas
suas carreiras: "Agora é a minha vez!" Eis um exemplo de como as despesas
públicas são receitas de alguém, sem ser claro que sirvam o interesse
público.
É difícil justificar este tipo de despesas - exceto por quem usufrui delas. É
difícil justificar que os governos não as eliminem ou reduzam muito. Mas também
é difícil entender por que razão: um, os media não fazem um escrutínio sério e
profundo das despesas da administração pública; dois, os media não revelam as
dualidades dos cidadãos face às despesas públicas; e três, os cidadãos não
exigem cortes concretos em despesas públicas que servem acima de tudo os
servidores do Estado.
Claro que se já o tivessem feito, significava que havia um controlo das
despesas públicas pelos cidadãos, e que estes se preocupariam com os seus
impostos mais do que extrair o que podem do Estado - e Portugal não teria
chegado perto da bancarrota. E regressamos ao princípio: todos defendem cortes
na despesa pública, mas todos se opõem a cortes em sectores concretos, porque
beneficiam dela e não querem deixar de beneficiar. Há unanimidade na intenção, e
bloqueio à ação. Está à vista, mas poucos querem ver.
1 comentário:
Não quero ler, muito obrigada.
Deste já estou FARTO!...
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