O ESBULHO DAS PENSÕES
A ânsia de cortar nas despesas públicas e de aumentar as
receitas para que o país recupere o mais rapidamente possível dos erros de
governação cometidos desde há cerca de duas décadas, mais recentemente
potenciados por uma imprevista conjuntura internacional e europeia altamente
desfavorável, e que nos conduziram à situação calamitosa em que nos
encontramos, tem um reverso que nos parece ainda mais grave do que o
generalizado empobrecimento do país: a tendência para o acentuado agravamento
das injustiças sociais.
Os desequilíbrios resultantes de medidas sectoriais
urgentes e pouco amadurecidas que atingem exclusivamente determinados grupos de
cidadãos, porque em determinado momento se consideraram as únicas possíveis
para cumprir objectivos de curto prazo como é o de atingir metas
preestabelecidas de redução do défice orçamental, têm levado á crescente
desacreditação do tão apregoado princípio político de que “os sacrifícios são
para distribuir por todos os portugueses”. Exceptuando-se naturalmente aqueles
que se encontram em situações próximas ou abaixo do limiar da pobreza e que
tendem a ser isentados de tais sacrifícios (o que até infelizmente nem sempre
acontece), as substanciais distorções no nível dos sacrifícios crescentemente
exigidos aos diferentes cidadãos, a nível remunerativo, fiscal, de condições de
trabalho, de apoio social, etc., criam nos que justificadamente se sentem
injustiçados um sentimento de revolta nada saudável no que respeita ao normal
funcionamento de um estado de direito democrático como supostamente é o nosso.
E mais acentuado se torna ainda o sentimento de revolta
quando se gera a sensação de que haveria alternativas viáveis para uma mais
equilibrada distribuição dos sacrifícios, pelas quais o poder político não quis
optar por falta de coragem ou, pura e simplesmente, para proteger determinados
grupos sociais ou interesses partidários. Acresce ainda a sistemática invocação
do acordo com a “troika” como “desculpa de mau pagador” para justificar todas
as medidas impopulares tomadas, mesmo quando elas não se constituem
substantivamente como uma imposição directa, objectiva ou premente desse
acordo.
O povo português, na sua genética paciência, aceita
resignadamente níveis de sacrifícios impensáveis para outros povos civilizados,
quando se sente bem liderado, sobretudo pelo reconhecimento do exemplo das
elites que o governam em termos de probidade, competência e determinação nas
respectivas atitudes e comportamentos políticos. Não só para o bem, como
algumas vezes até para o mal, conforme a História o tem demonstrado. Mas a
História também tem demonstrado que a sua confiança nas classes políticas se
vai perdendo à medida que cresce a percepção da fraqueza da sua capacidade de
liderança, quer por manifesta incompetência quer, muito especialmente, por
subversão, descontrolo ou mesmo descarado atentado aos princípios e à coerência
ética que deveriam reger as condutas dos poderes públicos. E mais rapidamente
se perde ainda tal confiança, quando se generaliza o sentimento de que muitas das
figuras públicas, que ocupam cargos políticos, lutam por ascender a esses
cargos mais para se servirem a si próprios e aos seus restritos grupos de
interesses e compadrios do que para servir o País e a colectividade nacional.
Vem este preâmbulo a propósito de uma das visíveis
injustiças que o actual Governo vem alimentando, sempre com o estafado
argumento de que não há dinheiro para financiar nada que não seja sustentável,
ao continuar na senda iniciada pelo anterior Governo, de penalizar
progressivamente as pensões, exceptuando naturalmente aquelas que, como
já atrás referimos, se encontram em patamares muito baixos.
Entretanto, o cidadão comum, sobretudo o que teve uma
longa carreira contributiva, pergunta, muito justificadamente, o que fizeram dos
seus descontos de uma vida inteira de trabalho, acrescidos naturalmente das
correspondentes comparticipações das entidades patronais (incluindo o Estado
quando se trate de funcionários da administração pública), para lhe porem agora
em causa os direitos adquiridos no quadro legal que regeu as suas legítimas
expectativas ao longo dos anos, no que respeita à sua pensão de reforma ou
aposentação?
A escassa informação de que dispomos, pela enorme
dificuldade que há em obter dados consistentes sobre esta matéria, não nos
permite responder de forma clara e precisa, como gostaríamos, a tão pertinente
pergunta. Contudo, isso não nos impede de colocar várias questões que
consideramos muito relevantes para uma análise séria sobre o assunto.
É um facto indesmentível que a esperança de vida tem
vindo a aumentar, o que se traduz obviamente num aumento progressivo dos
recursos necessários para financiar a segurança social, não só em termos de
pensões e subsídios como na área da saúde. Por outro lado, a isso se junta,
agravando ainda mais a situação, o crescimento substancial do desemprego, em
consequência não só da contracção da economia, mas também da contracção de efectivos
que está a ocorrer no funcionalismo público. Torna-se, portanto, óbvio que o
aumento da população inactiva e o decréscimo da população activa convergem de
forma muito prejudicial à requerida sustentabilidade do sistema de segurança
social.
Porém, temos fortes razões para considerar que o sistema,
pelo menos no que às pensões respeita, deveria ter mantido um “volante”
financeiro constituído pelos descontos passados dos trabalhadores e entidades
patronais, em níveis que assegurassem a manutenção do volume das pensões de
aposentação, reforma e sobrevivência já atribuídas segundo as regras que na
altura vigoravam. Isto é, manter uma provisão bem gerida para este fim, uma vez
que os descontos efectuados só a este fim se deveriam destinar, e não a outros,
princípio que de facto, não temos dúvida em afirmá-lo, tem vindo a ser
desvirtuado.
E aqui se podem então levantar várias questões.
A primeira questão é a de saber se o referido “volante”
(provisão ou fundo) foi efectivamente bem gerido ou se foi aplicado em activos
de risco que conduziram a perdas substanciais do seu valor, conforme há alguns
anos chegou a ser noticiado em determinados órgãos de comunicação social. Se
isto aconteceu de facto, o cidadão comum tem o direito de saber toda a verdade
sobre o assunto e de inquirir-se sobre se alguém foi punido pela respectiva
irresponsabilidade e gestão danosa.
A segunda questão, que respeita exclusivamente à
administração pública, é a de saber se o Estado (como entidade patronal dos
seus funcionários) sempre cumpriu os deveres que legalmente lhe cabiam nesta
matéria, ou se mantem dívidas passadas que procura esquecer. A mesma dúvida se
pode colocar em relação às transferências devidas pelo Estado e pelas empresas
públicas à Segurança Social, relativamente aos trabalhadores assalariados e
outros que trabalharam em funções públicas, sem quaisquer descontos para a
Caixa Geral de Aposentações.
A terceira questão, semelhante à anterior, mas aplicável
ao sector privado, é a de se saber, qual o efectivo nível de dívidas das
empresas à Segurança Social e o que tem sido feito para as recuperar.
A quarta questão, é a de se saber em que medida, e até
que ponto, o Estado tem utilizado esse “volante” para fins diferentes daqueles
a que ele verdadeiramente se deveria destinar, ou seja, o exclusivo pagamento de
pensões de aposentação, reforma e sobrevivência. É que, em nossa opinião, os
subsídios de desemprego, pensões atribuídas a quem nunca descontou um centavo,
actualizações automáticas de pensões atribuídas por lei a determinados grupos
profissionais sem qualquer suporte de um fundo de pensões integrado no sistema,
etc., não negando a extrema necessidade de dar apoio a quem dele precisa, na
maioria dos casos por fortes imperativos de natureza social, não deveriam
contudo constituir uma carga a suportar só por aqueles que descontaram, ao
longo de uma vida de trabalho, para obterem o direito à sua reforma. No caso
específico dos subsídios de desemprego, torna-se quanto a nós indispensável que
este encargo passe a ser suportado pelo orçamento do Estado e não pelo sistema
previdencial da Segurança Social, não só porque o flagelo social do desemprego
deve ser moralmente suportado por todos os cidadãos, mas também porque tal
medida iria contribuir para uma maior convergência daquele sistema com o
sistema previdencial da Administração Pública.
O Estado tem todo o direito e o indiscutível dever de
assistir os seus cidadãos em maiores dificuldades, mas deve fazê-lo com os
recursos financeiros que recebe de todos os cidadãos que pagam impostos, e não
só de uma parte deles, como acontece se as situações atrás elencadas forem
tidas como um dever de solidariedade a partilhar, exclusivamente, pelos que
trabalharam e descontaram para as respectivas pensões de reforma ou
aposentação. Assim, de facto, o sistema nunca pode ser sustentável! E sobretudo
em situações de prolongada crise económica e social, em que as prestações
sociais de carácter transitório tendem a crescer exponencialmente.
A quinta e última questão respeita aos impostos. Nesta
matéria, assiste-se presentemente a uma inversão, iniciada em 2011 mas mais
consistentemente imposta a partir do corrente ano de 2012, no tratamento fiscal
dos pensionistas relativamente aos trabalhadores activos. O reconhecimento de
que algum benefício fiscal daqueles relativamente a estes se justificava devido
ao normal crescimento das despesas de saúde, em consequência da idade mais
avançada ou limitações físicas dos aposentados, foi rapidamente substituído
pelo conceito de que a necessidade de cortar nas despesas públicas da segurança
social justificam os cortes nas pensões, ainda que tal desiderato se tenha de
conseguir à custa do aumento da receita fiscal em sede de IRS. E o
facto é que para 2012 se verifica um agravamento do IRS dos pensionistas,
relativamente a idênticos rendimentos do trabalho, ainda maior do que aquele
que já tinha ocorrido em 2011, concretamente nos seguintes casos:
a) Para pensões superiores a 1.000 euros, patamar a
partir do qual todas são afectadas pelo facto da dedução específica de 6.000
euros aos rendimentos anuais brutos das pensões, que vigorava em 2011, ter
descido abruptamente para 4104 euros (idêntica à dos rendimentos do trabalho);
b) Um agravamento adicional para pensões mensais
superiores a 1875 euros mensais, porque a dedução específica de 4104 euros
(fixa para os rendimentos do trabalho) começa a ser gradualmente reduzida a
partir desse patamar, até à sua total extinção para pensões superiores a 4.000
euros;
c) Ainda mais um agravamento adicional aos anteriores,
para as pensões superiores a 3.000 euros mensais, devido ao crescente
desfasamento da progressividade das taxas acima desse patamar, relativamente às
taxas dos rendimentos do trabalho, uma vez que o respectivo escalonamento foi
construído por forma a se atingir o escalão máximo de 40% nas pensões
superiores a 9.200 euros, enquanto que para os rendimentos do trabalho tal
escalão máximo só é atingido nos rendimentos mensais superiores a 25.000 euros!
Assim, nada nos garante que, ao enveredar-se por este
perigoso caminho de discricionária prepotência, o agravamento da situação
fiscal dos pensionistas, relativamente aos demais tipos de rendimentos, não
continue a constituir uma regra, despudoradamente discriminatória, que de ano
para ano vá incidindo progressivamente sobre patamares de pensões cada vez mais
baixos e carregando cada vez mais nos mais altos, num total desrespeito pelos
princípios constitucionais da igualdade e da equidade fiscal e pela
consideração que deviam merecer os pensionistas com longas carreiras
contributivas. E ainda por cima sem que por esta via (a fiscal) se esteja a
contribuir de alguma forma para a sustentabilidade do sistema previdencial do
Estado, uma vez que o IRS cobrado aos pensionistas não fica consignado a esse
fim. Dito por outras palavras, os
pensionistas estão a ser crescentemente penalizados relativamente a todas as
demais categorias de rendimentos, sem que isso contribua em nada para a
sustentabilidade das suas pensões.
Se isto não é um premeditado esbulho, então a que
situações diferentes destas é aplicável tal termo?
O argumento da “falta de dinheiro” não pode justificar a
leviandade com que se tratam matérias tão sensíveis como esta. Os pensionistas
que recebem pensões acima dos 1.000 euros mensais (para já não falar dos cortes
dos 13º e 14º meses que afectam todas as pensões acima de 600 euros) têm toda a
razão em sentir-se totalmente desconsiderados e esbulhados pela forma como
estão a ser tratados. E até porque, como se disse, nos parece estar claramente
em causa a constitucionalidade da discriminação negativa dos pensionistas, quer
por atentado ao princípio da igualdade, conforme definido no Art. 13º da CRP,
quer por manifesta desconformidade com o seu Art. 104º (Impostos), não se
compreendendo mesmo como se vai aplicar uma taxa única nas situações de acumulação
de rendimentos de pensões com rendimentos de trabalho, tanto no caso de um
titular como de dois titulares.
Creio que só há uma via para tentar pôr cobro a esta
inadmissível discriminação contra os reformados e aposentados. Dado que não há
sindicato para os defender, restaure-se o movimento dos pensionistas, com vista
a ressuscitar o “partido dos reformados” (que até já teve uma efémera
existência) com esta ou qualquer outra designação melhor. Ele seria agora mais
oportuno do que nunca. Só com deputados na Assembleia da República, que tirem
lugares aos partidos instituídos, se podem verdadeiramente defender os
legítimos direitos dos pensionistas.
Porém, um partido político não deve ter um ideário
restritamente corporativo. Junte-se-lhe o ideário da luta pela moralização e
decência da vida política nacional, do repúdio pelos compadrios geradores de
incompetência e laxismo nos cargos públicos, do combate à corrupção e aos
vergonhosos favorecimentos de interesses privados a custa do erário público! São
afinal ideais certamente muito caros a quem teve uma vida honesta de trabalho.
Para isto, não há que pensar em alinhamentos às esquerdas
ou às direitas políticas, porque em todas elas cabe este ideário desde que as
pessoas que o perfilhem sejam íntegras de carácter e tenham o sentido da
virtude e da justiça, independentemente das suas convicções políticas ou
religiosas.
Vou divulgar este texto. Peço a quem concordar com a sua
essência, o favor de continuar a divulgá-lo. Assim haja bem intencionados suficientes que queiram e possam dar corpo a esta
sugestão.
JOSÉ MANUEL CASTANHO PAES
Pensionista da
Caixa Geral de Aposentações (com 48 anos de descontos).
1 comentário:
Por estar totalmente de acordo com o texto, faço votos que a iniciativa de dar voz aos reformados e pensionistas, divulgarei o mais que puder esta mensagem.
Um grande bem haja.
Joaquim P. Rodrigues
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