Ser militar no Estado de direito
Entrei para a Marinha em 1979. Em nenhum dos cursos militares que frequentei (licenciatura e profissionais) estava no programa responder às questões: o que é ser militar?; o que é o Estado de direito? Tive de aprender por mim.
Dá-se formação e treino em valências do militar, até se ensinam "Organização" e "Regulamentos" (raramente, por juristas), e espera--se que cada um aprenda pela experiência ao longo da carreira o que deve defender um militar português na actualidade, e como o deve fazer. Em suma, parece ignorar-se a questão mais elementar na formação dos militares: o que é ser militar no actual Estado de direito democrático português.
Assim, não pode surpreender a diversidade de opiniões, em regra pouco fundamentadas; que a conduta de cada um exprima sobretudo gostos; que falte coerência ao conjunto; e que tantos reajam mal à óbvia afirmação de que quem não sente vocação deve deixar as Forças Armadas (FA).
Na verdade, há coerência, mas ela é ditada pelo corporativismo, que não é exclusivo da profissão militar, nem de Portugal, e que está estudado noutros países. O corporativismo ocupa um espaço que os governos deixam livre porque não sabem o que querem das suas FA, e não sabem as perguntas certas, nem como actuar, sobre elas.
A resposta corporativa das FA, distante do exemplar discurso oficial, é cultural e considera a lei uma mera orientação, largamente dependente da interpretação circunstancial do chefe (em abstracto), que não baliza rigorosamente as condutas das FA, e que pode ser corrosiva do espírito (como até já foi escrito).
Eis alguns exemplos: só ao fim de 11 anos de oficial ouvi falar num curso militar no Princípio da Legalidade; os chefes de Estado- -Maior (autoridades administrativas) não aceita(va)m a subordi-nação a um secretário de Estado (membro do Governo, um órgão de soberania); as dificuldades opostas a diligências judiciárias em unidades militares; as ideias que, por vezes, chegam a tentativas de calar militares incómodos nos media; a construção de doutrinas internas que contrariam a Constituição e a lei (por exemplo, o "duplo uso" na Marinha); os militares no activo que participam em manifestações; ou as resistências à concentração de serviços de saúde, e às reformas do ensino superior, militares. Podia dar mais exemplos que conheço, mas estes são representativos.
Corrosiva, sobretudo para o espírito dos militares mais jovens, é a ocorrência de dualidades entre o discurso oficial e a prática interna. Quando um chefe militar é muito diligente a aplicar normas disci-plinares, mas é pouco diligente a cumprir a lei que a si se aplica, dá um mau exemplo, falha uma virtude militar básica, corrói a confiança que os subordinados precisam de ter no seu comandante, e semeia a confusão. Por isso, tenho dúvidas de que algum militar seja preferido por saber o que é ser militar no Estado de direito face a outro que funciona bem com ambiguidades e expedientes, que tantos militares criticam nos políticos.
É preciso e é possível reformar o ensino superior militar. Mas antes da redução de custos e do aumento de eficiência deve estabelecer- -se a doutrina sobre o que é ser militar neste Estado de direito democrático, da qual decorre a formação básica comum para todos os militares, segundo os seus níveis hierárquicos.
É uma questão política e tem de ser imposta pelo Governo e mantida pela avaliação externa, porque as FA não o fizeram por si quando tinham autonomia na formação e treino, sobretudo dos oficiais.
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