NOTA PRÉVIA:
No DN de hoje saiu um artigo (4000 caracteres) do sr. Comandante Patrício Leitão. Achando estranho , a CACINE foi tentar saber pormenores e , numa bordada de sorte , conseguiu o original(12000) que aqui, e com a devida vénia , publica em primeira mão e exclusivo.
Os últimos acidentes no mar, com perda de vidas humanas ou
tão só com elevado risco de desgraça, vêm evidenciar o que, já em situações
anteriores, parecia apontar numa nova direcção: mais do que a falta de meios
para contornar riscos ou de tecnologia para os detectar, poderão estar em causa
simples problemas de segurança, ou o acatar de elementares procedimentos de
navegação, nos quais os profissionais deveriam ser o sujeito activo. Este é um
assunto que, em meu entender, deverá ser encarado e discutido com independência
de cálculos economicistas ou de pretensas razões de protecção social a
prevaricadores.
Quando das nossas primeiras viagens de instrução, como
cadetes da Escola Naval, primeiro a bordo dos draga-minas, depois a bordo da
«Sagres» e um pouco mais tarde nas fragatas, como jovens oficiais, era na ponte
dos navios que se passava o essencial da nossa aprendizagem.
A aplicação prática dos métodos teóricos, ensinados na
Escola, constituía o essencial de cada uma das quatro horas de quarto que
passávamos na ponte; mas além da Navegação, e de todas as outras matérias que
lhe estão associadas, aprendíamos mais, aprendíamos ali uma outra matéria
extremamente importante, que era a da interacção e das interdependências entre
os diversos indivíduos que compartilhavam aquelas responsabilidades, como sendo
uma relação vital à integridade do navio e à realização de cada missão.
A segurança da navegação será, porventura, o binómio mais
consistente que encontrámos depois, em cada momento no mar, ao longo das nossas
carreiras, tido naquele mais amplo sentido, por vezes quase exagerado, de que
nenhum pormenor deve ser descurado em cada ocasião, tendo sempre em mente que,
se se considerar que um determinado perigo se afigura verosímil, então devemos
admitir que ele existe de facto.
Todos nos lembramos, certamente, daquilo que até nos parecia
quase um despropósito, quando em navegação costeira se dava um resguardo de
duas ou três milhas para contornar o Cabo Espichel ou o S. Vicente; quando a
todas as horas se tinha que estabelecer a comparação da agulha magnética com a
girobússula, ou proceder à leitura barométrica; como o marinheiro do leme
repetia em voz alta, por dever, cada uma das ordens que recebia, ou ainda,
quando um outro marinheiro «cantava a sonda», sempre que a aproximação de
fundos baixos poderia pôr em causa a segurança do navio, ou também no mesmo
preceito informava a distância a terra ou a outro navio, se essa vizinhança
prefigurasse uma situação de emergência.
Em todas estas comunicações era e é, utilizada uma linguagem
própria, típica dos marinheiros, a qual em geral não é francamente acessível a
quem não anda no mar.
Essa mesma aprendizagem das ciências navais e idênticos
tirocínios na ponte eram igualmente postos em prática pelos nossos colegas da
Marinha Mercante, que muitas das vezes tinham recebido os ensinamentos dos
mesmos mestres, que em alguns casos serviam as duas Escolas, a Naval e a
Náutica.
Numa outra dimensão profissional, a da pesca costeira, e
quando ainda não existia formação escolar, o ensino era feito através da
transmissão de conhecimentos, a bordo, no árduo desempenho do confronto diário
com o mar, assim passando de geração em geração a prática das mais elementares
regras de navegação e de sobrevivência no mar. As Escolas de Pesca viriam mais
tarde dar um forte contributo na formação dos pescadores, a permitir que a
actividade pudesse ser alargada a outros horizontes.
A segurança no mar continuaria ainda assim, a ser uma
palavra-chave, na sala de aula a transmitirem-se os conhecimentos, onde quer
que houvesse formação náutica, o que naturalmente era exigido e recomendado ao
habilitar praticantes da Marinha de Recreio.
Embora naqueles nossos primeiros tempos, os navios já
dispusessem de radar e sonda, ainda assim mantinha-se a antiga configuração da
equipa de serviço á ponte, com um oficial chefe de quarto e por vezes até com
um outro oficial adjunto, mais o sargento de quarto, o cabo de quarto, o
marinheiro do leme, um vigia a cada bordo, um marinheiro ao radar e à sonda, um
sinaleiro e outro de serviço de ronda, o que podendo ser hoje considerado pouco
racional, em termos de gestão moderna de pessoal, era também feito em nome
dessa mesma segurança. Também recordo, por ser natural de uma terra de
pescadores, que as embarcações da pesca do cerco, as traineiras, tinham mestre
e contra-mestre, e na extensa tripulação, de noite ou sempre que a segurança o
recomendava, o mestre nomeava um vigia de quarto.
É geralmente sabido que uma carta náutica deve também ser
sempre usada sob um mesmo princípio de segurança e de parcimónia, tendo em
vista o fim a que cada uma se destina, e tendo igualmente presente a sua
escala, correlacionada com os critérios que foram usados no respectivo
levantamento hidrográfico, bem como a idade da carta. Numa mesma acepção, em
geral também ali vem realçado, como advertência, através da coloração azul em
apropriada isobatimétrica, a profundidade aquém da qual não é aconselhada a
navegação.
Tal como nesses idos anos sessenta, o radar e a sonda eram
modernos meios electrónicos ao dispor do navegador, a par ainda de uma quase
incipiente navegação por idênticos sistemas, e ainda assim se iam mantendo em
vigor os antigos princípios de disciplina e de segurança, também hoje, volvidos
cinquenta anos, e apesar do GPS, da Carta Electrónica, da melhoria nas
comunicações, da existência de sensores acústicos de alarme, dos hélices laterais
e de outros ganhos de operacionalidade trazidos pela evolução tecnológica, não
poderá dizer-se que foram encontradas razões suficientes, nem o historial
marítimo recente o aconselharia, para que se facilite ou se possa abdicar dos
mesmos elementares princípios de segurança.
A história da sinistralidade marítima na nossa costa, até
meados do século passado, relata com maior incidência, o estado do mar e da
visibilidade, como razões genéricas para os grandes naufrágios, num tempo em
que também os nossos pescadores se viam em grande dificuldade para aceder aos
seus varadouros naturais, o que está bem atestado nos dramáticos ex-votos, em
que a cena dominante era o homem do mar a agradecer à Sr.ª da Boa Viagem ou à
Sr.ª dos Aflitos a bênção de uma súbita acalmia do tempo.
A construção de portos, como os da Nazaré, Póvoa ou
Ericeira, a utilização do radar e da sonda, o incremento da previsão
meteorológica e até a construção de melhores embarcações, trouxe novas
condições de segurança, e por aqueles mesmos motivos a sinistralidade terá
diminuído, tornando até menos intervenientes os salva-vidas das estações ISN.
Paradoxalmente, e pese embora a possibilidade técnica real de uma constante
monitorização de qualquer navio no mar, os acidentes tornaram-se depois mais
frequentes e houve também alteração nas causas, as quais se centram agora numa
excessiva aproximação das zonas de rebentação, em avarias do motor, incêndios
ou alagamentos dos porões, ou então, tão só por se terem enrolado ao hélice a
tralha e os restos de artes de pesca que andam à deriva no mar.
Também aquele serviço de socorro passaria a ser
progressivamente desempenhado por meios navais e aéreos, com outra capacidade e
outra eficiência que os modestos salva-vidas e os seus heróicos tripulantes não
podiam ter, embora nem sempre o empenho e prontidão da Marinha e da Força
Aérea, para a busca e salvamento, tenham vindo a ser devidamente reconhecidos.
Os mais recentes sinistros marítimos, primeiro em Portugal
com uma embarcação de pesca, e depois em Itália, com um paquete de grandes
dimensões, já terão sido por demais dissecados na televisão, nos jornais, nos
blogues e até nas tertúlias, pelo que, embora esses incidentes estejam na
génese desta intenção de dar um mero contributo de opinião ao discutido, não me
deteria mais na sua análise, necessariamente superficial, ainda que não possa
deixar de realçar a bizarra comparação entre um pequeno barco de pesca que se
afunda no momento em que apenas o mestre estava ao leme, enquanto os outros
membros da sua tripulação descansavam no porão, e um grande navio de cruzeiro,
com o capitão a salvo numa balsa, a passar pela vergonha de ter de ser
confrontado com o abandono do que deveria ser o seu inalienável encargo,
deixando centenas de passageiros e tripulantes ao Deus dará.
Mas há um dado concreto que não pode ser escamoteado, ainda
que alguém abalizado possa afiançar que não representará qualquer risco, e
mesmo que a sua abordagem possa arrastar um potencial risco de ser mal
interpretada. Refiro-me a uma situação actual, em que o mar parece ter deixado
de ser aliciante para grande número de europeus, portugueses incluídos, pese
embora o crescente desemprego nos países tradicionalmente marítimos da União.
Dito isto, e não cuidando de encontrar aqui a razão para tal
desmotivação, trata-se apenas de constatar a profusão de nacionalidades que
hoje em dia se aglomera na extensa tripulação dos paquetes, nas mais variadas
funções e nos mais diferentes patamares de responsabilidade, o que numa outra
escala, também já vai acontecendo nas nossas embarcações de pesca.
Numa situação de sinistro e de consequente stress, em que a
comunicação se torna vital ao salvamento, o qual num instante se pode extremar
ao caos do «salve-se quem puder», ordens e expressões tão simples para o
pessoal marítimo, como «passa a mão ao cabeço» ou «dá a volta ao chicote pelo
seio», correm o risco de ser ignoradas ou até mal interpretadas.
No mar, não há traço contínuo na via, nem sinal visível de
proibição de circulação ou de estacionamento, nem recomendação para evitar
determinada área ou percurso; essas indicações estão nos Avisos aos Navegantes
e nas Cartas de Navegação e estão sobretudo no conhecimento e no bom senso de
quem foi designado para assumir funções.
Ainda que, à semelhança do controlo aéreo, já tenham sido
implementados corredores de tráfego no mar, com o intuito de tornar claro o
cruzamento e a aproximação aos portos, de navios de grande porte, em zonas de
potencial perigo na rota (Berlengas, Roca e Sagres na nossa costa), parece
ainda assim que há razões suficientes para fazer pensar que não se terá ido
suficientemente longe em matéria de condicionamento dos espaços marítimos.
Num tempo em que
também a sinistralidade rodoviária tem estado na ordem do dia, e em que, para
além dos consistentes códigos e até das protecções físicas nas rodovias,
profundas medidas têm vindo a ser regulamentadas e postas em prática, tendo em
vista a drástica redução da perda de vidas humanas e dos custos associados aos
prejuízos e a uma elevada hospitalização de feridos, talvez não fosse
despiciendo considerar que, aproveitando a mesma ideia de prevenção e
optimização das condições de segurança, a adaptação e transição de algumas
dessas precauções, do automóvel para o navio, pudesse vir a produzir alguns
frutos.
E então, a ser verdade o que nos é trazido pela comunicação
social em matéria de comentários sobre estes acidentes, talvez a última
inspecção anual ao motor e sistema de esgoto de uma embarcação, a validade e
adequação de uma habilitação náutica a um navio ou a um percurso, como também a
destreza e o treino para a utilização de adequados meios de salvamento, ou por
último ainda, mas sem perda de relevo, uma igual obrigação de um constante
controlo no cais ou à entrada na ponte, pelo menos nos grandes navios de
cruzeiro, quiçá com a utilização dos mesmos meios de detecção de álcool, a que
é aleatoriamente sujeito qualquer pacato cidadão que se desloca ao volante de
um automóvel, pudessem ter sido decisivos para evitar algum dos muitos
acidentes que, com desusada frequência vêm hoje acontecendo no mar.
Raul Patrício Leitão, capitão-de-fragata (Ref.)
Especialização em Hidrografia (I.H.); pós-graduação em
Gestão Portuária (I.S.T.)
Ex-Capitão do Porto de Cascais e ex-Presidente da Junta
Autónoma dos Portos do Centro
5 comentários:
Muito bem. E poderia continuar num próximo número explorando o tema da instrução e formação do pessoal do mar e dos mestres, em particular.
Interessante. Mas não percebi bem, o DN cortou o artigo?E a CACINE obteve o texto no DN por cortar?
Bom , se calhar não interessa....
LGF
Muito bem
zé luis
Não houve corte nenhum.
Houve um compromisso entre o cte Leitão e o DN sobre o espaço disponível.
O artigo inicial era demasiado grande para ser inserido como artigo de meia página.
Não houve censura.
Um abraço
Serafim Lobato
antigo jornalista
antigo Oficial Fuzileiro
Muito bem ! Seria posivel ter o contacto do Comandante Raul Patricio Leitão ? Agradeço resposta para maria.cvieira@gmail.com. OBG.
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